domingo, 4 de agosto de 2013

UMA HISTÓRIA DA LEITURA

 Alberto Manguel



O trecho que segue foi extraído do livro Uma História da Leitura, do escritor  argentino Alberto Manguel. Trata-se de um estudo profundo sobre o que a história registrou dos movimentos da leitura, desde as placas de argila da Suméria até os cibertextos ultramodernos. Manguel tem com a leitura uma convivência muito especial. Além de ensaísta, organizador de antologias, tradutor, editor e romancista, ele trabalhou dois anos como leitor do escritor (também argentino) Jorge Luís Borges, quando este já estava quase cego. Lendo para Borges (dos 16 aos 18 anos), o já apaixonado leitor tornou-se incurável! Uma História da Leitura é uma obra fundamental para todos os que desejam conhecer um pouco melhor a maravilhosa trajetória dos livros e seus diversos atores. Além de informações históricas preciosas, recheadas de relatos de sua própria vivência em meio aos livros, Manguel nos convida a refletir sobre a atividade da leitura e suas diversas “funções” e o nosso papel de leitor sob inusitados pontos de vista. Por esses bons motivos, selecionamos estes trechos das suas mais de 400 (belíssimas) páginas: 
(...) 
E, contudo, em cada caso é o leitor que lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. 
Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial. Só aprendi a escrever muito tempo depois, aos sete anos de idade. Talvez pudesse viver sem escrever, mas não creio que pudesse viver sem ler. Ler – descobri – vem antes de escrever. Uma sociedade pode existir – existem muitas, de fato – sem escrever, mas nenhuma sociedade pode existir sem ler. De acordo com o etnólogo Philippe Descola, as sociedades sem escrita têm um sentido linear do tempo, enquanto nas sociedades ditas letradas, o sentido do tempo é cumulativo; ambas as sociedades movem-se dentro desses tempos diferentes, mas igualmente complexos, lendo uma infinidade de sinais que o mundo tem a oferecer. 
Mesmo em sociedades que deixaram registros de sua passagem, a leitura precede à escrita; o futuro escritor deve ser capaz de reconhecer e decifrar o sistema social de signos antes de colocá-los no papel. Para a maioria das sociedades letradas – para o Islã, para sociedades judaicas e cristãs, como a minha, para os antigos maias, para as vastas culturas budistas – ler está no princípio do contrato social; aprender a ler foi meu rito de passagem. 
(...) 
Seguindo os ensinamentos de Aristóteles, Agostinho sabia que as letras, “inventadas para que possamos conversar até mesmo com o ausente”, eram “signos de sons” que, por sua vez, eram “signos das coisas que pensamos”. O texto escrito era uma conversação, posta no papel para que o parceiro ausente pudesse pronunciar as palavras destinadas a ele. 
As palavras escritas, desde os tempos das primeiras tabuletas sumérias, destinavam-se a ser pronunciadas em voz alta, uma vez que os signos traziam implícito, como se fosse sua alma, um som particular. Diante de um texto escrito, o leitor tem o dever de emprestar voz às letras silenciosas, a scripta, e permitir que elas se tornem, na delicada distinção bíblica, verba, palavras faladas – espírito. As línguas primordiais da Bíblia – aramaico e hebreu – não fazem diferença entre o ato de ler e o ato de falar: dão a ambos o mesmo nome. 
Nos textos sagrados, nos quais cada letra e o número de letras e sua ordem eram ditados pela divindade, a compreensão plena exigia não apenas os olhos, mas também o resto do corpo: balançar na cadência das frases e levar aos lábios as palavras sagradas, de tal forma que nada do divino possa se perder na leitura. 
Minha avó lia o Velho Testamento dessa maneira, pronunciando as palavras e movendo o corpo de um lado para o outro, ao ritmo da prece. Posso vê-la em seu apartamento sombrio na Barrio del Once, o bairro judeu de Buenos Aires, entoando as palavras antigas do único livro da casa, a Bíblia, cuja capa preta lembrava a textura de sua própria tez pálida amolecida pela idade. Também entre os muçulmanos o corpo inteiro participa da leitura sagrada. No Islã, saber se um texto sagrado é para ser ouvido ou lido é uma questão de importância essencial... O estudioso de leis e teólogo Abu Hamid Muhammad al-Ghazali estabeleceu uma série de regras para estudar o Corão, segundo as quais ler e ouvir o texto lido tornaram-se parte do mesmo ato sagrado. A regra número cinco estabelecia que o leitor deve seguir o texto lentamente e sem nenhum atropelo a fim de refletir sobre o que está lendo. A regra número seis mandava “chorar. [...] Se não consegues chorar naturalmente, então força-te a chorar”, pois o pesar deve estar implícito na apreensão das palavras sagradas. A regra número nove exigia que o Corão fosse lido “alto o suficiente para que o leitor o escutasse, porque ler significa distinguir entre sons”, afastando assim as distrações do mundo externo. 
(...) 
Até boa parte da Idade Média, os escritores supunham que seus leitores iriam escutar, em vez de simplesmente ver o texto, tal como eles pronunciavam em voz alta as palavras à medida que as compunham. Uma vez que, em termos comparativos, poucas pessoas sabiam ler, as leituras públicas eram comuns e os textos medievais repetidamente apelavam à audiência para que “prestasse ouvidos” à história. Talvez um eco ancestral dessas práticas de leitura persista em algumas de nossas expressões idiomáticas, como quando dizemos “este texto não soa bem” (significando “não está bem escrito”); ou ainda este livro “fala” sobre revoluções e não este livro “trata” de revoluções. 
(...) 
Ler em voz alta, ler em silêncio, ser capaz de carregar na mente bibliotecas íntimas de palavras lembradas são aptidões espantosas que adquirimos por meio incertos. Todavia, antes que essas aptidões possam ser adquiridas, o leitor precisa aprender a capacidade básica de reconhecer os signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu comunicar-se: em outras palavras, o leitor precisa aprender a ler. Claude Lévi-Strauss conta-nos que no Brasil, durante sua temporada entre os nhambiquaras, ao vê-lo escrever, eles pegaram o lápis e o papel, desenharam rabiscos imitando a escrita e pediram-lhe que "lesse” o que tinham escrito. Os nhambiquaras esperavam que seus rabiscos fossem tão imediatamente significantes para Lévi-Strauss quanto os que ele mesmo fizera. Para o antropólogo, que aprendera a ler numa escola européia, a noção de que um sistema de comunicação pudesse ser imediatamente compreensível a qualquer outra pessoa parecia absurda. Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções de nossa sociedade em relação à alfabetização – a canalização da informação, as hierarquias de conhecimento e poder -, como também determinam e limitam as formas pelas quais nossa capacidade de ler é posta em uso. 
(...) 
Em todas as sociedades letradas, aprender a ler tem algo de iniciação, de passagem ritualizada para fora de um estado de dependência e comunicação rudimentar. A criança, aprendendo a ler, é admitida na memória comunal por meio de livros, familiarizando-se assim com um passado comum que ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura. Na sociedade judaica medieval, por exemplo, o ritual de aprender a ler era celebrado explicitamente. Na festa de Shavuot, quando Moisés recebia a Torá das mãos de Deus, o menino a ser iniciado era envolvido num xale de orações e levado por seu pai ao professor. Este sentava o menino ao colo e mostrava-lhe uma lousa onde estava escrito o alfabeto hebraico, um trecho das Escrituras e as palavras “Possa a Torá ser tua ocupação”. O professor lia em voz alta cada palavra e o menino as repetia. A lousa então era coberta com mel e a criança a lambia, assimilando assim, corporalmente, as palavras sagradas. 
(...) 
Cuba, 1865. Saturnino Martínez, charuteiro e poeta, teve a idéia de publicar um jornal para os trabalhadores da indústria de charutos, abordando não somente a política, mas publicando também artigos sobre ciência e literatura, poemas e contos. 
Com o apoio de vários intelectuais cubanos, Martínez lançou o primeiro número de La Aurora em 22 de outubro daquele ano. O editorial anunciava: “Seu objetivo será iluminar de todas as formas possíveis aquela classe da sociedade a que se dedica. 
Faremos tudo para que todos nos aceitem. Se não tivermos êxito, a culpa será de nossa insuficiência, não de nossa falta de vontade”.
(...) 
Mas Martínez logo percebeu que o analfabetismo impedia que La Aurora se tornasse realmente popular; na metade do século XIX, apenas 15% da população cubana sabia ler. A fim de tornar o jornal acessível a todos os trabalhadores, ele teve a ideia de realizar uma leitura pública. Aproximou-se do diretor do ginásio de Guanabacoa e sugeriu que a escola auxiliasse a leitura nos locais de trabalho. 
Entusiasmado, o diretor encontrou-se com os trabalhadores da fábrica El Fígaro e, depois de obter a permissão do patrão, convenceu-os da utilidade da empreitada. Um dos operários foi escolhido como lector oficial, e os outros o pagavam do próprio bolso. Em 7 de janeiro de 1866, La Aurora noticiava: “A leitura nas fábricas começou pela primeira vez entre nós e a iniciativa pertence aos honrados trabalhadores da El Fígaro. Isso constitui um passo gigantesco na marcha do progresso e do avanço geral dos trabalhadores, pois dessa maneira eles irão gradualmente se familiarizar com os livros, fonte de amizade duradoura e grande entretenimento”. Entre os livros lidos estavam o compêndio histórico Batalhas do Século, romances didáticos como O Rei do Mundo, do atualmente esquecido Fernández y González, e um manual de economia política de Flórez y Estrada. 

Fonte: Uma História da Leitura Autor: Alberto Manguel - Editora Companhia das 
Letras – São Paulo – 1997