sexta-feira, 19 de julho de 2013

A SALA DOS LIVROS MORTOS


A sala dos livros mortos
Ignácio de Loyola Brandão

No seu primeiro dia como funcionária daquela biblioteca pública, Ana Lygia foi levada pela diretora para conhecer o prédio. Subiram e desceram escadas, o elevador há muito tinha sido desativado por falta de verba de manutenção, por sorte eram apenas três andares, mais o porão. Secretaria, diretoria e salas e salas repletas de livros em estantes de metal, uma pequena sala de convívio, uma saleta para os jornais. Existia até uma quantidade razoável de volumes, ainda que o acervo estivesse desatualizado em relação à atual literatura brasileira. 
Quanto à mundial, a atualização era sentida pelos best-sellers, por aqueles que tinham sido os mais vendidos nas revistas semanais. Finalmente, desceram ao porão, havia montes de caixas com doações de livros ainda em fase de estudos, o que valia e o que não valia a pena, porque os doadores em geral entregam à biblioteca o que não querem em casa e o que ninguém quer e não presta para nada. Duas saletas com material de limpeza e uma sala com porta de ferro, trancada.
- E aqui?
- Ninguém entra. É a sala dos mortos.
- Mortos?
- Sim, a sala dos livros retirados de circulação.
- Retiram? E qual o critério?
- Se em cinco anos ninguém retirou o livro, ele é descartado do mundo  dos livros vivos.
- E ficam aqui? Quanto tempo?
- Para sempre.
- Não podem ser doados a outras bibliotecas, ao público?Avisam: quem quiser livros venha buscar? Assim talvez continuem vivos!
- A lei não permite. É um bem público. Pertence ao patrimônio. É a situação mais complicada que existe, porque a burocracia impede essa doação, é preciso montar um processo jurídico e, como todo processo jurídico, se eterniza. Nem vale a pena, o melhor é esquecer.
- Posso ver a sala?
- Melhor não entrar. Aliás, tem um problema, a chave foi perdida, para mandar fazer outra monta-se um processo administrativo.
- Talvez tenha livros interessantes que eu queira ler.
- Não adianta, a lei diz que devemos inutilizar. Quando o livro vem para cá, tem uma determinada página arrancada, ou duas, uma do começo, outra do final.
Leitora desde a infância, Ana Lygia lembrou-se do Barba-Azul e do famoso cômodo no qual suas esposas não podiam entrar e quando entravam eram assassinadas. Sua curiosidade aumentou. Ela começou a trabalhar e meses mais tarde foi designada para um plantão de domingo, uma experiência nova. Aconteceu de ser dia chuvoso e ninguém foi à biblioteca. Ana Lygia lembrou-se da sala dos mortos, desceu, experimentou, trancada. Subiu, perguntou a uma auxiliar se sabia onde estava a chave, ela apontou para uma gaveta, disse que ali havia umas cem chaves, talvez fosse uma delas. Ana Lygia colocou-as em uma caixa e desceu. Começou a experimentar uma a uma.
Algumas ela descartou pelo tamanho, outras entravam, não giravam, ela não forçava, com medo de quebrar. Exercício de paciência. Também, ela não tinha nada a fazer. Finalmente, a chave 83 funcionou. Veio de dentro um cheiro abafado de mofo e umidade, ela abriu totalmente a porta, esperou. Procurou o interruptor e uma luz amarelada inundou o cômodo de fantasmas. 
Havia pilhas de livros amontoados até o teto. E, em volta, junto à parede, uma coleção de extintores de incêndio. Contou 35, cada um de um modelo, percebeu que alguns eram velhos, outros pré-históricos. Poderiam ser alinhados em um museu, ali estava a evolução dos extintores, os mais antigos enormes, desajeitados, para manobrar aquilo seriam necessárias duas pessoas.
Havia ainda relógios de ponto, alguns estapafúrdios, palavra que ela associou à idade do equipamento. Também fariam o encanto do velho Dimas de Melo Pimenta, um ícone da relojoaria nesta cidade. Ela experimentou mexer nas alavancas, umas travadas pela ferrugem, outras funcionaram com um ruído seco. Quantos teriam sido pontuais, quantos o relógio teria punido? Gostava de imaginar coisas assim, afinal, havia um quê de ficcionista dentro dela, daí sua paixão pelos livros e por ter escolhido a profissão. Ana Lygia percorreu aquele porão empoeirado contemplando escovas, vassouras, rodos, baldes furados, panos de chão podres, latas de cera, tubos de desinfetantes, detergentes, latas com pedacinhos de sabão, escovões. 
Nossa, há quantas décadas o escovão desapareceu da cena doméstica, quem ainda encera a casa? Tudo que devia ser descartado, porém era impossível, tratava-se de patrimônio.
Afinal, dedicou-se aos livros. Estendeu a mão, curiosa, puxou um. A Menina Morta, de Cornélio Penna. Puxa, esqueceram o Cornélio? Ninguém o leu por cinco anos? Foi folheando, livro grosso, talvez isso tenha assustado. Lendo. De repente percebeu a página arrancada. Apanhou outro livro, A Montanha Mágica, de Thomas Mann. E José de Alencar, Lúcio Cardoso, Ibiapaba Martins, Osman Lins, Mário Donato (puxa, fez tanto sucesso nos anos 50), José Geraldo Vieira,John dos Passos, Romain Gary, Malcolm Lowry, Oscar Wilde, Maria Alice Barroso. Todos mutilados. Apanhou um deles, escondeu debaixo da blusa. Levou para casa. Na biblioteca de um amigo encontrou um exemplar completo, digitou a página faltante, colou dentro do volume doente. A cada semana, leva um embora, recupera. Ela imagina que em alguns anos terá recuperado todos. Leva para bibliotecas comunitárias, existem várias. A simples idéia de ver um livro reciclado, ou queimado, a deixa doente. Mais fácil comprar outro? Sim. Mas e o prazer de salvar um livro? 

O Estado de S.Paulo, 4 jul. 2008 


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