sábado, 13 de junho de 2009

ENTREVISTA

PRÁTICAS LETRADAS

Maria da Graça Costa Val falou sobre os desafios da alfabetização, sobre os conhecimentos que as crianças têm da língua, sobre cultura e práticas de leitura e escrita, novas tecnologias e práticas alfabetizadoras, entre outras reflexões.
A educadora é formada em Letras pela UFMG, com mestrado em Língua Portuguesa e doutorado em Educação, atua na prática de ensino de Língua Portuguesa. Através do CEALE (Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da UFMG), Maria da Graça participou e coordenou vários projetos de políticas públicas voltados para a formação de professores de Ensino Fundamental e Médio, para o PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) de Ensino Fundamental e para a elaboração de propostas curriculares no Estado de Minas Gerais.
Entre os livros da educadora estão: Redação e Textualidade, (Martins Fontes, 1991); Professor-leitor, aluno-autor, reflexões sobre a avaliação do texto escolar, (Formato/CEALE, 1998, co-publicação com Evangelista, Aracy); Reflexões sobre práticas escolares de produção de textos: o sujeito autor, (Autêntica/CEALE, organizado com Rocha, Gladys, 2003); Texto, textualidade e textualização, (In: Pedagogia Cidadã: cadernos de formação – Língua Portuguesa, UNESP, 2004.)

Diário na Escola – Quais são os desafios de alfabetizar em um mundo de mudança?
Maria da Graça Costa Val
– O desafio é que não basta alfabetizar. É preciso formar o aluno para participar com desenvoltura e autonomia das práticas letradas usuais na sociedade. Se essas práticas mudam tão rapidamente, em função de novas demandas e novas possibilidades tecnológicas, é preciso formar alunos reflexivos, críticos, com capacidade e disponibilidade para aprender e descobrir por conta própria.

Diário na Escola – Hoje o acesso à informação vinculada à língua escrita é acessível de maneira igualitária. Mesmo assim os professores anseiam por um teste, um material que prove, demonstre os conhecimentos que as crianças possuem sobre a língua, acreditando que isso possibilitaria que elas aprendessem mais e melhor. Isso seria reforçar uma política de discriminação?
Maria da Graça Costa Val – A questão é o que se entende por “conhecimentos que as crianças possuem sobre a língua”, mais precisamente, o que se entende por “língua”. No campo das ciências da linguagem, atualmente, não cabe mais dúvida quanto à natureza histórica, social, heterogênea e variável das línguas humanas – todas elas, de qualquer época, de todos os povos, de primeiro e de terceiro mundo. Quer dizer, as línguas humanas mudam no tempo e variam no espaço e na hierarquia social. Nenhuma língua é um bloco homogêneo, cada grupo de falantes tem sua maneira própria de falar, isso é natural, inevitável e funciona muito bem. Isso quer dizer que não existe uma maneira certa de falar que se oponha às outras, que seriam erradas. Todas as maneiras de falar são boas e certas, servem à comunidade de falantes para as suas necessidades de comunicação e de elaboração do pensamento e dos sentimentos. Assim, “os conhecimentos das crianças sobre a língua” são sempre bons e certos. A outra questão é que, historicamente, por necessidades diversas, geralmente ligadas ao exercício do poder e da dominação, as sociedades, ao longo do tempo, acabam definindo uma das maneiras de falar, isto é, uma das variedades lingüísticas, como a variedade padrão, oficial, para ser usada em documentos, aprendida e ensinada na escola, preservada pela ciência e pela literatura, divulgada na imprensa. Por isso, é direito de todo cidadão dominar essa variedade, na leitura e na escrita, para poder usufruir do patrimônio cultural de sua sociedade. Parece que a pergunta centra-se na necessidade de um instrumento que permita ao professor ter um diagnóstico sobre os conhecimentos das crianças quanto à variedade padrão escrita do português. Não há mal nenhum nisso, pelo contrário, quando se tem clareza sobre a natureza heterogênea e variável das línguas humanas. É bom que os professores saibam o que os alunos já conhecem e o que ainda precisam aprender, sobre qualquer objeto de ensino e aprendizagem, para orientarem adequadamente seu trabalho. O cuidado necessário é, no caso do ensino de língua materna, não lidar de forma equivocada e preconceituosa com esse objeto, como se o português fosse só o chamado “português correto”.

Diário na Escola – O que é preciso mudar para gerar novas práticas alfabetizadoras mais democráticas, que permitam a todas as crianças serem alfabetizadas?
Maria da Graça Costa Val
– É preciso colocar dentro da escola, funcionando, muito material impresso e de outras mídias, de boa qualidade. A idéia do jornal, por exemplo, é ótima. Mas, além do jornal, livros de histórias, livros informativos sobre assuntos diversos, revistas, enciclopédias, internet etc., sejam manuseados pelas crianças. É preciso que os alunos convivam e vivam práticas letradas diversas, ganhando familiaridade e autonomia. Entretanto, assim como só alfabetizar não basta, dedicar-se só a desenvolver práticas voltadas para o letramento também não basta. Uma alfabetização democrática, hoje, é aquela que efetivamente alfabetiza – isto é, capacita as crianças a operarem com o sistema de escrita, lendo e escrevendo – e, ao mesmo tempo, contribui para a ampliação do grau de letramento dessas crianças.

Diário na Escola – Hoje fala-se em formar leitores usuários da cultura escrita. O que significa realmente isso? O que fazer para que isso se torne realidade?
Maria da Graça Costa Val – Na nossa sociedade, quem não é leitor tem possibilidades limitadas de trabalho, lazer, participação cultural e crescimento pessoal. O usuário da cultura escrita lê no outdoor, na televisão, no folheto de propaganda, nas embalagens de produtos comerciais, nos manuais de instruções de aparelhos diversos, na revista, na literatura, nos livros não ficcionais, nos impressos técnicos ligados à sua profissão, na internet, nos documentos pessoais, nas contas a pagar. Formar esse leitor pode começar no primeiro dia de aula das crianças de 4 anos, com o professor lendo textos diversos em voz alta (e demandando o envolvimento dos alunos): histórias, contos de fadas, matérias de suplementos infantis de jornais, instruções de jogos etc. E esse trabalho não tem data para terminar: vai numa espiral, crescendo conforme o desenvolvimento cognitivo e os interesses dos alunos, abrangendo textos cada vez maiores e mais complexos, ligados a um círculo cada vez mais amplo de práticas letradas.

Diário na Escola – Alguns teóricos defendem que as crianças precisam empreender atividades de leitura e escrita para compreender o sistema de escrita. A senhora concorda com isso?
Maria da Graça Costa Val – Com certeza. A gente deve aprender a fazer, fazendo e querendo fazer. Quanto mais a leitura e a escrita tiverem razão de ser e se mostrarem úteis e atraentes para os alunos, mais eles vão se envolver, mais depressa vão querer aprender. Escrever em sala de aula não significa “fazer redação”. Antes de ser capaz de encher uma folha de papel, a criança já pode produzir muitos textos escritos que têm sentido e funcionalidade e que possibilitam reflexões produtivas para a compreensão do sistema alfabético e a ortografia do português. Por exemplo, um crachá com seu nome, etiquetas para as prateleiras do armário da sala de aula, uma agenda com nome, endereço e telefone dos colegas, listas, anotações, avisos, convites etc. Essas atividades podem ser feitas coletivamente, com discussão entre os alunos e o professor, em duplas, em grupos e individualmente. Na leitura é a mesma coisa: há muito texto de circulação social que demanda uma interação compreensiva, interpretativa, que se apóia tanto na decifração do sistema de escrita quanto em elementos do contexto: folhetos de oferta de supermercados, propagandas, receitas culinárias, histórias e poemas ilustrados, instruções de jogos etc.

Diário na Escola – Como a escola encara a diversidade escolar? Como essa diversidade pode favorecer a aprendizagem?
Maria da Graça Costa Val – O mundo é diverso, a humanidade é diversa. Ainda bem. A diferença nos completa, nos diverte, nos abre a mente e o coração. Conhecer idéias, pontos de vista, jeitos diferentes de lidar com as coisas é bom, é positivo. Discutir as próprias idéias, precisar explicitá-las e falar delas com clareza e convicção é um ótimo exercício intelectual. Ouvir o outro, procurar entendê-lo, alterar a própria compreensão das coisas em função da explicação, dos argumentos, das dúvidas ou das dificuldades do outro também é uma maneira reflexiva, consistente e natural de aprender. É nesse sentido que a diversidade pode favorecer a aprendizagem. No entanto, a gente sabe que não é fácil operar com a diversidade no cotidiano da sala de aula, porque aparecem demandas, necessidades e expectativas diferentes e isso pode tornar muito complicado o trabalho do professor de organizar e orientar atividades produtivas para todos os alunos. Algumas diversidades requerem preparação especial do professor: como trabalhar, ao mesmo tempo, com crianças ouvintes e crianças com dificuldades auditivas, por exemplo? Quando o poder público pretende implantar um modelo de escola plural inclusivo, em que haja lugar para a convivência com a diversidade, precisa viabilizar essa pretensão oferecendo aos educadores boas condições de atuação, o que inclui formação especial, tempo remunerado, espaço, material e aparelhamento adequados.

Diário na Escola – Temos vivido em nosso país alguns efeitos da escolha por uma teoria não por reflexão, estudo, pesquisa, mas algumas vezes por modismo. Isso trouxe para o trabalho pedagógico o abandono de diversas práticas e atividades. Em alguns casos, por exemplo, passamos de um professor que sempre deixava copiar para outro que se aterroriza por ter um aluno que quer copiar. Isso evidencia um comodismo ou uma dificuldade de reconceitualizar os conhecimentos, descobrir quando uma prática, atividade, é útil e funcional?
Maria da Graça Costa Val – Isso é um processo social e histórico, difícil e complicado mesmo, como toda mudança social. Gera conflitos, tensões, entusiasmo e resistência. É muito difícil abrir mão dos próprios saberes, das próprias convicções, para abraçar uma novidade que parece deslegitimar toda a nossa história pessoal. Por outro lado, mesmo quando se abraça a novidade teórica, é muito difícil aprender a lidar com ela na prática, conseguir traduzi-la numa atuação consistente. Por outro lado, não há teoria completa, que dê conta satisfatoriamente de todos os aspectos do fenômeno: em geral, as teorias focalizam uma dimensão do problema e abandonam outras. Portanto, em primeiro lugar, pareceme que é preciso manter a tranqüilidade, não se angustiar tanto com a situação. A superação dessas dificuldades, a gente sabe, está no bom senso, no equilíbrio. Acho que estamos, agora, pelo menos no campo das discussões teóricas, vivendo um momento de reconsideração crítica de excessos e radicalismos, uma tentativa de recolocar as coisas no lugar. Hoje se reconhece como indispensável o trabalho da criança de “esmiuçar” o sistema de escrita, lidando com letras, sílabas, palavras, para descobrir os segredos do princípio alfabético e da ortografia do português, assim como se reconhece a necessidade imprescindível de atividades que proporcionem compreensão sobre o funcionamento social e utilidade da escrita. Nesse contexto, há lugar para a cópia inteligente: por exemplo, copiar o nome de objetos para fazer etiquetas que serão usadas na sala de aula, copiar a lista das atividades que serão feitas naquele dia, porque essa lista vai ser apagada do quadro negro.

Diário na Escola – Há professores que resistem ao uso de novas tecnologias. Qual sua opinião sobre a incorporação das tecnologias no trabalho escolar? De que modo o professor pode aproveitá-las no trabalho de produção de texto?
Maria da Graça Costa Val – Em primeiro lugar, o professor precisa dominar as novas tecnologias. Para isso, é necessário que ele tenha acesso aos instrumentos e a uma formação especializada para utilizá-los. Isso faz parte das responsabilidades da escola para com seus profissionais, é a formação em serviço, da qual o poder público precisa cuidar. A incorporação das novas tecnologias ao trabalho escolar é inevitável, porque elas já estão incorporadas à vida social. Usar a internet possibilita escrever textos de gêneros diversos para interlocutores distantes e desfrutar de situações autênticas de comunicação: e-mails, blogs, home pages, sites informativos etc. Usar o computador na escrita de qualquer texto, qualquer trabalho escolar, com orientação adequada do professor de português, permite lidar reflexivamente, por exemplo, com a ortografia, com o processo de monitoração, revisão e reelaboração da escrita on-line, com a formatação e a editoração (tipos de letras, ilustrações, gráficos, tabelas, composição das páginas internas, da capa etc.), tendo em mente os objetivos comunicativos, o destinatário, o modo e a esfera de circulação do texto.

Diário na Escola – Em que medida o bom rendimento do aluno é efetivamente resultado de um bom ensino?
Maria da Graça Costa Val – As crianças, ricas ou pobres, são igualmente inteligentes e capazes de aprender. O bom ensino parte desse princípio. Se as crianças das classes menos favorecidas têm oportunidades mais restritas de aprendizagem extra-escolar, a escola tem que se empenhar na ampliação dessas oportunidades, oferecendo aos alunos acompanhamento e orientação para uso de biblioteca, computador e internet, tempo e espaço para estudo extra-turno etc. Essa, a gente sabe, é a escola que sonhamos, mas também é a escola que precisamos começar a construir agora, batalhando, com as condições que temos.
*FONTE: DIÁRIO DO GRANDE ABC - DIÁRIO NA ESCOLA 03/09/2004

Um comentário:

Alfabetização em Foco disse...

Olá! Obrigado por nos brindar com uma postagem desse nível. Estaremos lendo uma, duas, cem vezes essa entrevista. Muito a acrescentar em nossa prática.
Excelente postagem.

Abraços.

Lenira