sexta-feira, 2 de julho de 2010

PARA GOSTAR DE LER... CONTO

O RETIRO DA FIGUEIRA
MOACYR SCLIAR
Sempre achei que era bom demais. O lugar, principalmente. O lugar era... era maravilhoso. Bem como dizia o prospecto: maravilhoso. Arborizado, tranqüilo, um dos últimos locais – dizia o anúncio – onde você pode ouvir um bem-te-vi cantar. Verdade: na primeira vez que fomos lá ouvimos o bem-te-vi. E também constatamos que as casas eram sólidas e bonitas, exatamente como o prospecto as descrevia: estilo moderno, sólidas e bonitas. Vimos os gramados, os parques, os pôneis, o pequeno lago. Vimos o campo de aviação. Vimos a majestosa figueira que dava nome ao condomínio: Retiro da Figueira.
Mas o que mais agradou à minha mulher foi a segurança. Durante todo o trajeto de volta à cidade – e eram uns bons cinqüenta minutos – ela falou, entusiasmada, da cerca eletrificada, das torres de vigia, dos holofotes, do sistema de alarmes – e sobretudo dos guardas. Oito guardas, homens fortes, decididos – mas amáveis, educados. Aliás, quem nos recebeu naquela visita, e na seguinte, foi o chefe deles, um senhor tão inteligente e culto que logo pensei: “ah, mas ele deve ser formado em alguma universidade”. De fato: no decorrer da conversa ele mencionou – mas de maneira casual – que era formado em Direito. O que só fez aumentar o entusiasmo de minha mulher.
Ela andava muito assustada ultimamente. Os assaltos violentos se sucediam na vizinhança; trancas e porteiros eletrônicos já não detinham os criminosos. Todos os dias sabíamos de alguém roubado e espancado; e quando uma amiga nossa foi violentada por dois marginais, minha mulher decidiu – tínhamos de mudar de bairro. Tínhamos de procurar um lugar seguro.
Foi então que enfiaram o prospecto colorido sob nossa porta. Às vezes penso que se morássemos num edifício mais seguro o portador daquela mensagem publicitária nunca teria chegado a nós, e, talvez... Mas isto agora são apenas suposições. De qualquer modo, minha mulher ficou encantada com o Retiro da Figueira. Meus filhos estavam vidrados nos pôneis. E eu acabava de ser promovido na firma. As coisas todas se encadearam, e o que começou com um prospecto sendo enfiado sob a porta transformou-se – como dizia o texto – num novo estilo de vida.
Não fomos os primeiros a comprar casa no Retiro da Figueira. Pelo contrário; entre nossa primeira visita e a segunda – uma semana após – a maior parte das trinta residências já tinha sido vendida. O chefe dos guardas me apresentou a alguns dos compradores. Gostei deles: gente como eu, diretores de empresa, profissionais liberais, dois fazendeiros. Todos tinham vindo pelo prospecto. E quase todos tinham se decidido pelo lugar por causa da segurança.
Naquela semana descobri que o prospecto tinha sido enviado apenas a uma quantidade limitada de pessoas. Na minha firma, por exemplo, só eu o tinha recebido. Minha mulher atribuiu o fato a uma seleção cuidadosa de futuros moradores – e viu nisso mais um motivo de satisfação. Quanto a mim, estava achando tudo muito bom. Bom demais.
Mudamo-nos. A vida lá era realmente um encanto. Os bem-te-vis eram pontuais: às sete da manhã começavam seu afinado concerto. Os pôneis eram mansos, as aléias ensaibradas estavam sempre limpas. A brisa agitava as árvores do parque – cento e doze, bem como dizia o prospecto. Por outro lado, o sistema de alarmes era impecável. Os guardas compareciam periodicamente à nossa casa para ver se estava tudo bem – sempre gentis, sempre sorridentes. O chefe deles era uma pessoa particularmente interessada: organizava festas e torneios, preocupava-se com nosso bem-estar. Fez uma lista dos parentes e amigos dos moradores – para qualquer emergência, explicou, com um sorriso tranqüilizador. O primeiro mês decorreu – tal como prometido no prospecto – num clima de sonho. De sonho, mesmo.
Uma manhã de domingo, muito cedo – lembro-me que os bem-te-vis ainda não tinham começado a cantar – soou a sirene de alarme. Nunca tinha tocado antes, de modo que ficamos um pouco assustados – um pouco, não muito. Mas sabíamos o que fazer: nos dirigimos, em ordem, ao salão de festas, perto do lago. Quase todos ainda de roupão ou pijama.
O chefe dos guardas estava lá, ladeado por seus homens, todos armados de fuzis. Fez-nos sentar, ofereceu café. Depois, sempre pedindo desculpas pelo transtorno, explicou o motivo da reunião: é que havia marginais nos matos ao redor do Retiro e ele, avisado pela polícia, decidira pedir que não saíssemos naquele domingo.
– Afinal – disse, em tom de gracejo – está um belo domingo, os pôneis estão aí mesmo, as quadras de tênis...
Era mesmo um homem muito simpático. Ninguém chegou a ficar verdadeiramente contrariado.
Contrariados ficaram alguns no dia seguinte, quando a sirene tornou a soar de madrugada. Reunimo-nos de novo no salão de festas, uns resmungando que era segunda-feira, dia de trabalho. Sempre sorrindo, o chefe dos guardas pediu desculpas novamente e disse que infelizmente não poderíamos sair – os marginais continuavam nos matos, soltos. Gente perigosa; entre eles, dois assassinos foragidos. À pergunta de um irado cirurgião o chefe dos guardas respondeu que, mesmo de carro, não poderíamos sair; os bandidos poderiam bloquear a estreita estrada do Retiro.
– E vocês, por que não nos acompanham? – perguntou o cirurgião.
– E quem vai cuidar da família de vocês? – disse o chefe dos guardas, sempre sorrindo.
Ficamos retidos naquele dia e no seguinte. Foi aí que a polícia cercou o local: dezenas de viaturas com homens armados, alguns com máscaras contra gases. De nossas janelas nós os víamos e reconhecíamos: o chefe dos guardas estava com a razão.
Passávamos o tempo jogando cartas, passeando ou simplesmente não fazendo nada. Alguns estavam até gostando. Eu não. Pode parecer presunção dizer isto agora, mas eu não estava gostando nada daquilo.
Foi no quarto dia que o avião desceu no campo de pouso. Um jatinho. Corremos para lá.
Um homem desceu e entregou uma maleta ao chefe dos guardas. Depois olhou para nós – amedrontado, pareceu-me – e saiu pelo portão da entrada, quase correndo.
O chefe dos guardas fez sinal para que não nos aproximássemos. Entrou no avião. Deixou a porta aberta, e assim pudemos ver que examinava o conteúdo da maleta. Fechou-a, chegou à porta e fez um sinal. Os guardas vieram correndo, entraram todos no jatinho. A porta se fechou, o avião decolou e sumiu.
Nunca mais vimos o chefe e seus homens. Mas estou certo que estão gozando o dinheiro pago por nosso resgate. Uma quantia suficiente para construir dez condomínios iguais ao nosso – que eu, diga-se de passagem, sempre achei que era bom demais.

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