terça-feira, 24 de abril de 2012

ENTREVISTA


Tizuko Kishimoto, da USP: brincar é diferente de aprender


Autor:Servico de Comunicação e Mídia da Faculdade de Educação da USP

Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Tizuko Morchida Kishimoto dá aulas na graduação e pós-graduação, nas áreas do brinquedo, educação infantil e formação do professor. Também exerce as funções de coordenadora do Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos (Labrimp) e do Museu da Educação e do Brinquedo (MEB).
Pedagoga, com doutorado e pós-doutorado em educação, tem vários livros publicados sobre assuntos relacionados a jogos, brincadeiras e educação infantil.
Em entrevista ao Jornal do Professor, Tizuko Kishimoto diz que brincar é diferente de aprender e fala de temas como as principais brincadeiras utilizadas na aprendizagem infantil, a melhor forma de utilizar brinquedos na sala de aula, brincadeiras tradicionais e jogos eletrônicos, e educadores de destaque na área de brinquedos educativos.

Jornal do Professor – A senhora pode conceituar as palavras brinquedo e brincadeira?
Tizuko Morchida Kishimoto – Não há um conceito universal sobre tais termos, uma vez que o brincar é visto como polissêmico, tendo várias significações. No entanto, um dos usos pode ser o de conceituar o brinquedo no aspecto material e imaterial (qualquer objeto industrializado, sucata, meu dedo, minha voz, uma idéia), como algo que se destina ao brincar, que se torna um suporte para a ação de brincar. Posso brincar com meu ursinho ou boneca, uma pedra, meus amigos e uma bola ou sozinho com meu amigo imaginário. A brincadeira é o resultado de ações conduzidas por regras, em que se pode usar ou não objetos, mas que tenha as características do lúdico: ser regrado, distante no tempo e no espaço, envolver imaginação, dispor de flexibilidade de conduta e de incerteza.
JP – Qual é a importância de se utilizar brinquedos ou brincadeiras para o aprendizado infantil?
TMK – Não se pode dizer que o brincar leva a qualquer tipo de aprendizagem. Brincar é diferente de aprender. O brincar é importante por duas razões: para a criança, o brincar é importante para a expressão de seus interesses e a comunicação com outros e, para o adulto, o brincar é importante para observar o objeto ou situação de interesse da criança e, posteriormente, planejar atividades que de fato representem situações que envolvem a criança.
Na atualidade, a concepção de educação vista como de melhor qualidade é a que respeita os saberes e a experiência da criança e seja participativa. O professor não educa sozinho. Pais, profissionais, outras crianças e a comunidade, todos fazem parte deste conjunto de atores responsáveis pela educação. O primeiro passo da educação é a descoberta do que a criança gosta, seus interesses, o que já sabe e o que gostaria de saber. O brincar é excelente recurso para observação dos interesses e ações da criança. Pelo brincar, a criança evidencia saberes e interesses, além de propiciar condições para aprendizagens incidentais.
JP – Quando a criança aprende pelo brincar?
TMK – Quando, por exemplo, pula corda e aprende diferentes formas de fazê-lo, quando pula junto com outra criança ou pula no ritmo de cantigas. Nesse processo pode aprender inúmeras habilidades inerentes à própria brincadeira. Pode aprender, também, quando experimenta novas regras na brincadeira com outras crianças.
O brincar é importante para a criança expressar significações simbólicas. Pelo brincar a criança aprende a simbolizar. Ao assumir papéis, ao usar objetos com outras finalidades para expressar significações, a criança entra no processo simbólico. O brincar auxilia o desenvolvimento simbólico. Mas não se trata de entender o símbolo como exercício ou cópia de letras e números em práticas de uso do brinquedo no ensino formal. A criança, ao brincar de fazer compras no mercado, desenvolve a linguagem verbal e quando dispõe de um ambiente preparado, com embalagens de caixas de mantimentos, refrigerantes com rótulos que indicam o nome dos produtos, e utiliza dinheiro que constrói como moeda de troca, vai penetrando no mundo letrado e gradativamente avançando no processo de simbolização, conhecido como emergência, no letramento.
A aprendizagem ocorre também quando a criança no brincar, aprende o roteiro ou guia que subsidia a brincadeira. Para brincar de casinha, é preciso que os parceiros saibam definir os personagens, o que cada um vai fazer, qual cenário deve ser utilizado. Para qualquer brincadeira imaginária as crianças utilizam guias que lhes permitem compartilhar temas, personagens e sequências de ações. A aprendizagem desses guias implica na capacidade de “leitura da mente do outro”, a entrada na subjetividade do outro e atenção para a sequência das ações que complementam o brincar coletivo.
Tais atividades requerem a observação do brincar, e em seguida, o planejamento conjunto com as crianças, em uma situação que já não é o brincar, mas ação mediada pelo adulto, para em seguida, introduzir elementos da cultura do adulto para ampliar as experiências da criança.
O ensino de conteúdos curriculares pelo brincar pertence a outra modalidade que se convencionou chamar “jogo educativo ou didático”, com características diversas do brincar livre.
JP – A utilização de brincadeiras também é importante para o aprendizado em faixas etárias mais elevadas? Neste caso, como a brincadeira pode ser inserida?
TMK – Nas faixas etárias mais elevadas já não se trata do brincar livre, mas do que se convencionou chamar de “jogo didático”, em que se usam objetos (brinquedos) para ensinar. Neste caso, o brinquedo é usado como material pedagógico destinado a uma função específica de ensino de algum conteúdo curricular. Embora legítimo, não se trata de brincadeira, mas ação planejada do adulto que cria situações dirigidas para que o aluno possa agir sobre o objeto ou situação para retirar conclusões.
Entre a diversidade de jogos didáticos para o ensino de conteúdos específicos há inúmeros jogos com letras, números, cores, formas, profissões, entre outros. Na formação de profissionais há os de simulação em que adultos em formação representam papéis ou situações relacionadas a um campo profissional: mercado financeiro, enfermagem, biologia e educação.
JP – Qual a melhor forma de utilização de brinquedos na sala de aula?
TMK – Não se tem uma fórmula única para uso do brinquedo e da brincadeira. Algumas sugestões:
1. Necessidade de escolher os brinquedos. Não se pode utilizar brinquedos destinados ao consumo familiar, de uso individualizado de uma criança, para uso institucional. Os brinquedos destinados ao uso coletivo devem ser seguros, ter durabilidade e resistência. Pratos e xícaras não podem ser de miniatura e de plástico pouco resistente. Melhor os de tamanho normal, feitos de material resistente. As panelas devem ser de alumínio e as conchas de madeira.
2. Ao selecionar e organizar os brinquedos nas salas é necessário pensar nas temáticas simbólicas significativas no contexto em que a criança vive, sem fazer distinções de gênero, classe social ou etnia. Verificar a faixa etária das crianças para selecionar tais os brinquedos. As classificações de brinquedos como o Esar (exercício, símbolo, acoplagem e regras) e o ICCP (International Council for Children Play) podem ajudar na escolha de brinquedos para os campos afetivo, relações cognitivas e sociais e expressão motora.
3. Verificar a utilidade do brinquedo ou objeto colocado na área da brincadeira, questionando qual o uso que a criança fará, que tipo de experiência poderá adquirir com o objeto. Pensar nas experiências significativas das crianças para a seleção dos brinquedos.
4. Separar os brinquedos em áreas ou setores de modo que a criança possa utilizá-los sem se desorganizar. Se o brinquedo serve para construir é preciso que estejam disponíveis em áreas em que a construção seja possível. Se os brinquedos se destinam ao faz de conta é preciso que estejam juntos para facilitar o aparecimento de temáticas simbólicas. Se o brincar requer uso de água ou terra é preciso providenciar espaço e materiais. Brinquedos misturados, quebrados e mal conservados dentro de caixas não auxiliam o desenvolvimento do imaginário das crianças.
5. É importante dar opções de brincadeiras coletivas e individuais que representem a diversidade da cultura lúdica do país.
6. Toda criança deve ter o direito ao brinquedo e brincadeira independente de questões de gênero, etnia e classe social, o que equivale dizer que não se pode separar os brinquedos para meninos e meninas ou pobres e ricos. A diversidade cultural brasileira deve ser contemplada na inserção de brincadeiras dos segmentos culturais aos quais pertencem as crianças.
7. Os brinquedos devem ser organizados em ambientes que favoreçam o uso autônomo da criança, junto a mobiliário na altura da criança para que favoreça o uso e a guarda do material.
JP - Desde quando as brincadeiras foram incorporadas como ferramentas da educação infantil?
TMK – Embora a relação entre o brincar e o educar fosse tema de estudo desde os tempos greco-romanos, foi com Froebel que o brinquedo e a brincadeira penetram na educação infantil.
Froebel teve duas preocupações: inserir as brincadeiras simbólicas como forma de cultura da infância, em que mães e crianças brincam juntas e que a criança ao aprender as brincadeiras da tradição compartilha com outros a cultura lúdica e usar os materiais de construção (brinquedos de construção) em atividades dirigidas pelos adultos.
A segunda vertente foi a que mais se divulgou e os brinquedos passaram a ter uso dirigido. A brincadeira simbólica ficou em segundo plano.
JP – Quais os principais educadores ou pedagogos que se destacaram na área de brinquedos educativos?
TMK – Froebel pensou nos brinquedos educativos, os “dons” para desenvolver as atividades (ocupações) destinadas ao ensino dirigido pelas jardineiras. Médicos como Itard, Seguín, Montessori e Decroly estudaram os brinquedos para educar especialmente as crianças com necessidades especiais.
JP – Quais as principais brincadeiras utilizadas na aprendizagem infantil?
TMK – Dependendo do tipo de brinquedo que a criança utiliza certas aprendizagens podem ocorrer.
Há teorias como a piagetiana, que correlaciona a fase do desenvolvimento ao tipo de jogo. Dessa forma, há jogos para a fase senso-motora que estimulam o movimento (carrinhos para puxar, chocalhos); para a fase simbólica, os brinquedos que se relacionam com o desenvolvimento simbólico, incluindo aspectos da afetividade (bonecas, bichinhos de pelúcia,) e objetos do mundo tecnológico (geladeira, computador); para a fase operatória, os brinquedos que possibilitam agir para ver os resultados, como os jogos de tabuleiro. Há ainda jogos que despertam a vertente social, como os jogos de sociedade, em que se brinca junto e se partilha situações postas pelo jogo, e os jogos de construção, que levam a criança a construir desde um bolo de areia até um avião com detalhes de aerodinâmica. Em cada uma dessas modalidades a criança aprende ao agir sobre o objeto, produzindo cultura lúdica.
Os usos dependem das concepções dos professores. O brincar livre ou o brincar dirigido tem em sua base valores diferentes. No primeiro caso, predomina a idéia de que a criança tem saberes e que merece credibilidade. Portanto, ao observar a criança descubro seus interesses e vou planejar como educá-la ouvindo a própria criança, seus familiares e os profissionais. No segundo caso, não observo a criança, defino préviamente as atividades a serem ofertadas e seus objetivos. Resta à criança obedecer e executar a ação solicitada. Neste caso, uma das certezas é o pouco envolvimento da criança.
JP – As brincadeiras devem priorizar o movimento ou não?
TMK – A criança e todo ser vivo precisam do movimento para viver, expressar e se comunicar. Aspectos motores, cognitivos, sociais e afetivos integram-se no ser humano, especialmente nas crianças pequenas em que pensamento e ação caminham juntos. Especialmente para crianças pequenas a ação motora é fundamental. Pelo brincar envolvendo ações motoras a criança amplia o desenvolvimento cognitivo, até que possa separar a ação motora da significação simbólica.
JP – Os jogos eletrônicos e de computador podem ser utilizados para o aprendizado?
TMK – A criança tem direito a qualquer brinquedo independente de seu sexo, etnia ou classe social. Os jogos eletrônicos são jogos iguais aos outros. Aprender a usar essa nova ferramenta dos tempos atuais é essencial. Assim como as crianças nos tempos passados aprenderam a usar o rádio, o telefone e a televisão, que hoje fazem parte do repertório de brinquedos, o mundo digital é a nova ferramenta do ser humano.Brinquedos da era digital são importantes para a emergência dessa nova forma de letramento. Sons, imagens, movimento e interatividade somam-se às letras, criando um mundo com novos “textos” que a criança da “era net” deve ter acesso.
JP – As brinquedotecas são importantes? Por quê?
TMK – Brinquedotecas são equipamentos culturais importantes que devem permanecer fora dos recintos escolares. A escola deve dispor de brinquedos em todas as salas sem que se use a denominação “brinquedoteca”. Esse termo deve ficar restrito a equipamento fora dos domínios escolares, destinado à educação informal, como existe em todos os países.
JP – É importante que a escola ensine brincadeiras antigas e tradicionais? Por quê?
TMK – O brincar não é inato. Toda criança precisa aprender a brincar para se expressar e se comunicar. Nos tempos atuais, pais não têm tempo para ensinar seus filhos e muitos desconhecem as brincadeiras antigas e tradicionais. Cabe à escola e outros centros culturais ensinar tais brincadeiras. Há um imenso repertório de cultura sobre o brincar, representando a diversidade cultural do país, que não deve ser esquecida.

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