EDUCAÇÃO INFANTIL: ESPAÇOS E EXPERIÊNCIAS
Daniela de O. Guimarães
Achadouros
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade (Manoel de Barros).
O objetivo central deste texto é refletir sobre a qualidade dos espaços planejados para o trabalho educacional com crianças pequenas. Então, inicialmente, trata-se de definir o que entendemos como Educação e, em seguida, como determinada organização dos espaços pode interferir na concretização de nossos projetos educacionais.
Hoje, é possível entendermos Educação como a possibilidade de investimento na expansão da criança em suas múltiplas dimensões: emocional, sensorial, motora, mental, sócio-afetiva.
Fazer educação significa cuidar do outro, considerando-o como sujeito ativo e afetivo, que produz sentido sobre o mundo com suas ações corporais, sensoriais, e mentais, expressandose de múltiplas formas, em permanente confronto e colaboração com o social no qual está mergulhado. Nesta perspectiva, educar é escutar o outro-criança, mobilizando ampliações de suas possibilidades de exploração do mundo.
Assim, a educação compromete-se com o desenvolvimento da "cognição corporificada", ou seja, relaciona-se não só com o que acontece na mente, no racional, na lógica, mas envolveespecialmente o corpo e a emoção. Principalmente, relaciona-se com a idéia da aprendizagem não só como solução de problemas, repetição do modelo de mundo adulto, mas como criação de sentidos sobre o mundo, invenção de possibilidades, com o corpo inteiro.
De modo geral, a tendência, ao olharmos a criança, é buscar “o que já sabe?”; “o quanto já sabe?”; “o que já aprendeu?”, revelando preocupação com quantidade e variedade de informações organizadas racionalmente, ou seja, buscando como a criança representa a realidade em sua fala e ação. De outro modo, ao investirmos no desenvolvimento da produção de sentidos da criança sobre a realidade, deslocamos o foco para questões tais como “como a criança sente?”; “como se expressa em diferentes canais (corporal, oral, etc.)?”; “como experimenta diversos materiais?”; “como cria sentidos sobre nossa realidade, no contato com o que se dispõe desta realidade para ela?”.
Portanto, se considerarmos uma criança ativa, exploradora e criadora de sentidos, é preciso pensar um espaço e um educador que dêem apoio aos seus movimentos, que incentivem sua autoria e autonomia, que contribuam para a diversificação de suas possibilidades.
Compreender a educação como mobilizadora da capacidade da criança de produzir sentido sobre o mundo e não repetir padrões já existentes implica um desenho de espaço e um determinado papel de educador. Ou seja, é necessário levar em conta o diálogo com a expressividade das crianças, o incentivo às suas capacidades de criar cenas, narrativas (com vários suportes), invenção de situações, soluções inusitadas para as questões que emergem no coletivo, permitindo-lhes prosseguir, testar suas hipóteses, experimentar formas novas de relação, sustentar o que constroem.
Se prefixarmos tudo, dizendo sempre o que as crianças vão fazer, usando o planejamento como antecipação, já sabemos sempre onde as ações vão chegar. Conseqüentemente, diminuímos as possibilidades expressivas (as crianças não sentem que suas produções têm escuta e apoio).
É importante que o espaço apresente a organização do mundo (o que acontece quando dispomos fotografias, reproduções de obras de arte, textos, livros, etc.) e que favoreça que as crianças experimentem situações expressivas diversas (com a variedade de materiais disponíveis, tais como panos, caixas, etc.).
Por conseguinte, organiza-se para nós a seguinte questão: como, efetivamente, o espaço de trabalho com as crianças pode favorecer a expansão criativa, a invenção de problemas e soluções novas, diversificação das possibilidades expressivas, sensoriais, emocionais da criança?
O projeto educacional que envolve as crianças de 0 a 6 anos no norte da Itália, especialmente na cidade de Reggio Emilia, oferece-nos inspiração para responder a essa questão, à medida que diversas pesquisas nos espaços de trabalho com as crianças visam analisar: como elas usam o espaço? Como se organizam nele? O que o educador pode fazer no espaço para ampliar as possibilidades socializadoras e criativas das crianças? No projeto italiano há três idéias que são as chaves para a compreensão do papel do espaço no apoio às manifestações expressivas das crianças. Uma não é mais importante do que a outra, e as três idéias se interconectam no contexto das relações de adultos e crianças no cotidiano.
Primeiramente, a idéia da flexibilidade do espaço. Em segundo lugar, a importância do espaço apoiar os relacionamentos das crianças. Por fim, o espaço como convite à ação, à imaginação e à narratividade. A seguir, vamos explorar cada uma dessas idéias, refletindo sobre suas implicações na construção dos espaços de trabalho com as crianças em nossa realidade brasileira.
Espaço flexível:
Inspirados em Bachelard (1993), é fundamental compreendermos que o espaço planejado pelo arquiteto, em suas dimensões objetivas, é diferente do espaço vivido. Ou seja, o tamanho de um espaço para a criança não tem relação só com a metragem dele, mas relaciona-se com a forma como este espaço é experimentado. Uma casa com uma metragem pequena pode ser sentida pela criança (ou pelo adulto) como maior do que um espaço com dimensões maiores, se há intimidade, sensação de segurança e pertencimento nessa casa. Conseqüentemente, o espaço habitado e vivido é um espaço de limites transformáveis por quem o habita. Ou seja, o espaço objetivo torna-se “lugar de...” experiências, relações, criações; torna-se ambiente de vida, a partir das experiências que nele compartilhamos. O espaço é algo projetado, o lugar é construído nas relações.
Quando pensamos um espaço para a relação com as crianças, é importante que possamos aliar às qualidades físicas (o que nele é importante ter – objetos para construção, bonecos, papéis de diferentes tamanhos, fantasias, etc.) com as qualidades imaginativas (como essas coisas vão convidar a inventar possibilidades, pesquisas, cenas, narrativas? Como, na relação com essas coisas, as crianças vão construir significados?). Essa idéia da flexibilidade do espaço vivido é referendada nas palavras de Bachelard (1993), quando ele afirma que “o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo...” (p. 25).
Pensamos nos espaços antes de as crianças entrarem, mas quando eles são habitados e vividos é que se tornam ambientes de experiência, ganhando contornos de fato. De acordo com os educadores de Reggio Emilia (1998), as crianças são nômades, transformadoras de espaços, móveis e materiais, não brincam de casinha de boneca só na casinha de boneca; não cantam e dançam apenas no espaço de música, etc. Vale observarmos, inclusive, como usam de forma plástica o chão, as paredes, as cadeiras, fazendo pistas, demarcando territórios que se tornam salão de beleza, casinha, consultório médico, castelo, etc.
No contexto das creches, em nossa experiência brasileira, é comum que as salas de atividades das crianças sejam as mesmas onde elas dormem e comem. Assim, o berço e a cadeira de alimentação tornam-se mobiliários que se prestam não só ao sono e à alimentação. As crianças ressignificam esses objetos em suas relações com eles, expandindo suas funções.
Assim, os berços podem ser mediadores do contato das crianças entre si, se são organizados de modo a favorecer troca de olhares, toques, objetos. As cadeiras tornam-se esconderijos, etc. Também os panos e colchonetes, ao mesmo tempo em que servem de apoio para que as crianças se sentem, engatinhem e explorem o chão, ganham novos sentidos quando se tornam suportes para brincar de esconder, ou quando se prestam a serem empilhados e derrubados, sucessivas vezes.
Na realidade das escolas de Educação Infantil, onde a presença de mesas e cadeiras marca uma preocupação com o “ensino”, a transmissão, a concentração, é importante observarmos que, ao lado do uso formal destes artefatos, as crianças transformam mesas em esconderijos, cadeiras em trens, ou em aviões.
Por conseguinte, é importante acompanhá-las, observá-las, no sentido de fortalecer suas recomposições dos espaços. Torna-se questão para os educadores: como incentivar o salão de beleza com outros materiais? Como as outras atividades que precisam das cadeiras podem não “destruir” o castelo que as crianças fizeram com elas? Por outro lado, é importante não perder de vista os limites também inerentes às relações sociais. Espaços e objetos podem ser transformáveis até o ponto em que não atropelem as relações vigentes e necessidades coletivas. Por exemplo, um pote de tinta azul talvez não possa transformar-se num rio pela questão do desperdício, da relação com os materiais. Isso pode ser conversado, outras soluções inventadas.
De qualquer modo, tanto num campo como no outro, na creche e na escola, trata-se de considerar até que ponto abrimos espaço para a plasticidade, para a expansão criativa das crianças, para a recriação das regras. É claro que isso tem limites e eles se relacionam com a conservação dos objetos, necessidade de organização coletiva, dentre outros necessários contornos que a vida em sociedade exige. No entanto, no trabalho com as crianças de 0 a 6 anos, é urgente, a cada dia, refletir sobre a tensão entre regra e flexibilidade, uso formal dos objetos e recriação de suas funções.
Espaço relacional:
É importante refletir também sobre: como o espaço acolhe e sustenta os relacionamentos entre as crianças? Acolher não é somente ser gentil, não se trata só de produzirmos um espaço aconchegante e gostoso (o que também é fundamental), mas, sobretudo, de considerarmos como o espaço sustenta os planos das crianças e as interações que desenvolvem. Os cantinhos que criam – nos mochileiros, na casinha etc. – para pequenas trocas e encontros, são permitidos? A disposição dos objetos favorece a formação de subgrupos e a criação de cenas e dramatizações?
De acordo com o trabalho em Reggio Emilia: As crianças e os adultos precisam pertencer a um grupo social para comparar idéias e dividir experiências com os outros. A proximidade cria vínculos que permitem cada um reconhecer a si e ao outro (...). Trata-se da comunidade como internalização do outro como um valor (...). Comunidade é uma qualidade do espaço que encoraja encontros, trocas, empatia e reciprocidade (Reggio Children, 1998, p. 21).
Algumas pesquisas realizadas em instituições de educação na cidade do Rio de Janeiro buscaram investigar como as crianças transformavam espaços em lugares, como meninos e meninas desenvolviam relacionamentos nos espaços. Perceberam que quando se movimentam livremente no espaço, as crianças tendem a formar subgrupos (onde acontecem trocas de objetos, negociações). Pode-se ver fortemente a força narrativa nestas experiências. Espaços e objetos catalisam encontros e favorecem a expressividade.
Numa das publicações das pesquisas italianas , é narrada em imagens a história de duas crianças, Mateo e Katherine. Reproduzimos aqui a cena em palavras, para que possamos perceber como a qualidade do espaço apóia a formação de duplas e subgrupos, aprendizagem e comunicação: as duas crianças dançavam, envolvendo-se em tules que mudavam suas formas de acordo com o movimento que faziam. Eles começaram uma imitação recíproca. O mútuo entendimento se tornava cada vez mais refinado, até o ponto em que um único olhar era suficiente para decidirem que iriam se envolver em um único véu, criando um tipo de nicho para a brincadeira que envolvia olhar e imitação. O prazer naquela situação não passou despercebido pelo grupo que estava ali em torno. As outras crianças foram atraídas pela performance, divertindo-se e tornando-se a audiência. Logo os dois perceberam a audiência, voltando-se em sua direção. A audiência participa cada vez mais ativamente. Ficaram tão envolvidos que os dois protagonistas acolheram o grupo no seu jogo. Poucas palavras foram proferidas, mas o entendimento mútuo foi profundo. A brincadeira foi enriquecida e variada com a inclusão de novos parceiros. Todos perceberam e participaram das convenções criadas: transparência, ver e não ver, o som/vozes que acompanham os movimentos, etc A presença dos tules e a força da interação da dupla mobilizaram o grupo, produzindo comunicação e criação de novos sentidos pela mediação de gestos, olhares, risos e expressões faciais. Tudo isso foi fortalecido com o registro da cena pela professora (sob a forma de fotografias), chamando a atenção para os relacionamentos emergentes.
De modo geral, de acordo com as pesquisas italianas já citadas, nestes movimentos livres no espaço, as crianças se encontram, formam duplas, trios e subgrupos, geradores de histórias e dramatizações diversas. Nestes contextos, meninos tendem a ser mais nômades (buscam pulos, saltos, corridas); e as meninas tendem a construir “lugares nos lugares” (demarcando limites para formar suas histórias). Conseqüentemente, torna-se desafio para os educadores tanto desafiar as meninas em movimentos mais largos e convidar os meninos para as cenas das meninas, quanto oferecer possibilidade para que o nomadismo aconteça e os “lugares nos lugares” possam ser formados. No primeiro caso, trata-se de garantir o espaço amplo para a expansão corporal; no segundo caso, pensar na oferta de poucos elementos de diferentes materiais que possam ser transportados e favoreçam a construção de lugares (panos, almofadas, etc.).
No cenário das creches brasileiras, é comum que os espaços dos berçários sejam ocupados principalmente por berços e os espaços das crianças maiores, por mesas e cadeiras. São mobiliários que sugerem a atividade individual: berços para uma criança, cadeira para cada uma. Essa situação desafia-nos a pensar como constituir a idéia de um espaço relacional em nossa realidade. Tendo em vista o tamanho padrão dos berços, é preciso um para cada criança? Ou podemos usá-los em duplas, abrindo mais espaço livre no chão e oportunidade de as crianças interagirem com os parceiros num mesmo berço? É possível ter um espaço só para o sono, diferente do espaço de brincar? Quando há um espaço de brincar, ele se organiza de modo a favorecer a interação de subgrupos, em cantos e nichos, ou é um grande espaço livre, com brinquedos no alto das estantes? É importante pensarmos os colchonetes, brinquedos e outros dispositivos materiais das creches como mobilizadores de contato, favorecendo que as crianças se encontrem, troquem olhares, objetos e sentidos. A idéia do espaço como suporte aos relacionamentos implica, também, a relação entre o espaço educativo e o espaço da cidade: como os dois se interpenetram e dão suporte um ao outro?
O “lado de fora” da creche e da escola de Educação Infantil são sentidos pela criança como espaços da instituição? Ou, como espaços que favorecem e acolhem a continuidade de suas experiências? É um desafio para nossa realidade viver a cidade como oportunidade de interação com a cultura, a natureza, a vida, ampliando as relações que acontecem entre as paredes dos prédios institucionais.
Espaço instigador:
As investigações dos italianos, já citadas, também focalizam a seguinte questão: como as crianças usam o canal sensório no espaço? Como a diversidade de formas, cores, texturas, tamanhos mobilizam múltiplas possibilidades na construção de cenários para as narrativas?
No contexto destas questões, observando a relação das crianças com os materiais disponíveis, uma série de estratégias foi sendo criada. Por exemplo, o uso da luz artificial. Os pesquisadores perceberam que uma faixa de luz delimita cenário para dramatizações.
Retroprojetores simples, ou pequenos focos de luz numa sala escurecida, criam ambientes para jogos de sombra diversos. Eles enfatizam que percepções sensoriais são refinadas quando a criança pode explorá-las e expressá-las (por isso a importância da luz, cor, acústica, beleza e diversidade no espaço).
Então, indicam a importância de atentar para a qualidade evocativa dos materiais. Por exemplo, pequenos canos de PVC, focos de luz, cones de plástico, e muitos outros materiais (que tantas vezes sobram nas obras e no comércio da cidade) são mobilizadores do potencial sensível e construtivo das crianças. Ainda, enfatizam muito a importância da diversidade de planos nas produções (bi e tridimensional); tamanhos; imagens; qualidade dos materiais.
Os espaços convidam à ação e à imaginação, por isso a importância de o educador funcionar quase como um cenógrafo, possibilitando as cenas que serão criadas pelas crianças, ajudando a que essas cenas possam ser sustentadas e ampliadas. A diversidade de materiais é um desafio para a realidade brasileira. De modo geral, os espaços da creche e das escolas de Educação Infantil são povoados pelos brinquedos tradicionais (bolas, encaixes, quebra-cabeças, etc.). Com certeza, eles são fundamentais e instigadores.
Mas, há uma série de outras possibilidades que, muitas vezes, permanecem invisíveis: almofadas, diferentes cerdas de escovas, farinhas, caixas de papelão, etc. Objetos do cotidiano de nossa vida social, às vezes, interessam mais às crianças do que os que são produzidos para elas; é importante ficarmos atentos a isso, ampliando suas possibilidades de interação e contato com superfícies, formas e texturas.
O espaço e os objetos que o constituem instigam pelo que convidam. Às vezes convidam ao deslocamento, às vezes à observação. Colocar pequenos pedaços de madeira em um buraquinho, compor uma casa com as folhas das árvores, fazer casas com caixas, capas com jornal são possibilidades de descobrir nos objetos sentidos novos, pelo que eles sugerem.
Cabe ao educador atentar para o encontro das crianças com os objetos e os espaços, compreendendo e mapeando as possibilidades que daí surgem.
Enfim, finalizamos com as palavras de um dos idealizadores do trabalho nas creches e escolas de Reggio Emilia. Ele sintetiza, de forma emblemática, as diversas dimensões da importância do espaço no projeto pedagógico que realizam, instigando e inspirando nossa realidade: “[...] Valorizamos o espaço devido a seu poder de organizar, de promover relacionamentos agradáveis entre as pessoas de diferentes idades, de criar um ambiente atraente, de oferecer mudanças, promover escolhas, e a seu potencial para iniciar toda a espécie de aprendizagem social, afetiva, cognitiva. Tudo isto contribui para uma sensação de bem-estar e segurança nas crianças...” (Loris Malaguzzi, apud Gandini, 1999, p.157)
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