segunda-feira, 9 de março de 2009

ARTIGO

O CONTO DE FADAS
O IMAGINÁRIO INFANTIL E A EDUCAÇÃO
Nelly Novaes Coelho

Desvendar o mistério e o encantamento que envolve os contos de fada, ao longo da história da humanidade, é a tarefa preferida da professora Nelly Novaes Coelho que nos pergunta: por que tais histórias tão antigas continuam a interessar leitores adultos e crianças? Neste artigo, direcionado ao professor de educação infantil, ela busca respostas para essa questão nos apresentando uma abordagem extremamente enriquecedora.
Sem dúvida, tão antigo como a humanidade é o ato de contar histórias. E também a sedução que as narrativas maravilhosas exercem sobre os homens, da infância à velhice. É curioso notar que, hoje, em pleno mundo do fantástico progresso tecnológico, da velocidade dos multimeios de comunicação de massa e do império da imagem, os contos de fadas estão de volta. Até os "distraídos" podem perceber que o mercado editorial vem sendo invadido pela grande voga da magia do maravilhoso, pela moda dos chamados "clássicos" da literatura universal ou pelas narrativas maravilhosas em geral, como o conto de fadas. Ao que parece, a realidade concreta que nos rodeia já não basta.
Mas se pensarmos na distância que existe entre o nosso tempo ultramoderno e os tempos primitivos ou arcaicos (nos quais se perdem as origens dessas narrativas fabulosas, surgidas há séculos em várias regiões da Europa), torna-se inevitável a pergunta: por que tais histórias tão antigas continuam a interessar os leitores (crianças ou adultos)? Por que o destino da Gata Borralheira ou Cinderela, ou o da Branca de Neve, da Bela Adormecida, da Bela e a Fera e outras e outras continuam a interessar? Que importância pode ter para os leitores de hoje as tristezas do Patinho Feio e sua lenta transformação em Cisne? Ou a desobediência da Chapeuzinho Vermelho, que vai levar bolo para a avó e escolhe o perigoso caminho da floresta, em lugar da estrada reta e clara, e assim atrai o Lobo, que acaba devorando ela e a avó?
Para podermos responder a essas interrogações, é preciso lembrar que tais narrativas se fundamentam em "lições de vida" dadas pela sabedoria ancestral – a sabedoria dos povos, que, desde a origem dos tempos, vêm constituindo a humanidade em contínua evolução.
Na verdade, por mais que os homens transformem o mundo em que vivem com sua inteligência e trabalho, sua natureza humana não muda. Nela se misturam as "paixões da alma" (amor, ódio, amizades, medo, vontade de poder, ideais, desejos, inveja, ciúmes, solidariedade, fraternidade, etc.) e as "necessidades básicas" do ser humano (ar para respirar, alimento para matar a fome e proteção para o corpo). Tanto as "paixões" quanto as "necessidades básicas" são a matéria-prima dos contos de fadas e de todos os livros que venceram o tempo e através de milênios ou séculos continuam a interessar os leitores ou ouvintes.
E é graças a essa "matéria-prima" humana, somada ao seu "veículo de expressão" – a linguagem narrativa – que os contos de fadas e os "clássicos" estão novamente entrando nas escolas. Já é ponto pacífico o fato de que cabe à educação moderna (ou pós-moderna?) a tarefa de oferecer caminhos para a formação da consciência de mundo da criança (ou do educando em geral), e não apenas servir como instrumento de informações. Em um mundo como o nosso, dinamizado pelas multilinguagens visuais, sonoras e velozes, a leitura da palavra, isto é, do texto (principalmente literário, poético), ,faz-se cada vez mais necessária para que as novas gerações não se imobilizem como "gerações sem palavras". Gerações sem consciência de si mesmas, sem consciência histórica e, conseqüentemente, sem consciência crítica. A ausência de autoconsciência redunda em indivíduos sem autonomia interior, meros joguetes das palavras-de-ordem da sociedade de consumo e lucro, que já se instalou no mundo e o transformou na "aldeia global" de que fala McLuhan.
Sociedade bela/horrível (ainda em processo de formação) que ao mesmo tempo em que gera o progresso e melhora (às vezes desequilibra) a vida no planeta também provoca a alienação humana porque atrai o indivíduo para fora de si mesmo, alimenta-o apenas de exterioridades; impede a formação da sua consciência crítica; impede que cada eu adquira a consciência de seu lugar no mundo e de sua relação essencial com o outro. Uma das verdades do nosso tempo é que sem essa conscientização do eu em relação ao outro e sem o domínio da palavra que nomeia e expressa as realidades não há plena realização existencial.
Um dos fecundos caminhos para essa autoconscientização é a leitura: é o corpo a corpo do eu-leitor (ou ouvinte) com as experiências de vida do outro, que a literatura lhe oferece. E como esse "corpo a corpo, essa conscientização do eu em relação ao outro precisa começar desde cedo (quando a criança passa a perceber o mundo à sua volta), um dos meios que os adultos podem usar para orientá-las é o conto de fadas. De maneira inconsciente e divertida, a criança entra em contato com a sabedoria humana que vem da origem dos tempos, foi guardada pela memória dos povos e transmitida pelo "contar histórias". Desse fenômeno tiramos uma lição: o "contar histórias", mais do que entretenimento prazeroso, é uma experiência vital, é um exercício de viver. Como disse Cecília Meireles:
Os livros que têm resistido ao tempo são os que
possuem uma verdade capaz de satisfazer a inquietação
humana, por mais que os séculos passem.
Estão nesse caso os contos de fadas, os clássicos universais. Todos eles, por meio de mil variantes das situações narradas, tramam-se em torno de algumas poucas invariantes, que correspondem às necessidades básicas do ser humano. Tal como existe um código
genético fisiológico (DNA), pelo qual a natureza "programa" cada ser humano, também deve existir um "código espiritual" que, desde a origem dos tempos, "programa" a alma da humanidade. Nos clássicos infantis (contos de fadas, contos maravilhosos, fábulas...) é essa "alma da humanidade" que nos fala. As grandezas e as misérias do ser humano estão ali transformadas em narrativas mágicas, inverossímeis do ponto de vista da lógica ou da realidade comum, mas que seduzem e convencem porque, de maneira inconsciente ou subliminar, tocam o leitor em suas aspirações vitais mais profundas e, as mais das vezes, inconscientes.

Assim, por exemplo, em Branca de Neve, na trama criada entre a Rainha madrasta, a Branca de Neve e os Sete Anões, entram em confronto a inveja ou o ciúme que a beleza e a bondade podem despertar; valorizam-se a paciência diante de um destino adverso e a busca de outros caminhos para fugir dele; exalta-se a solidariedade a ser dada a quem necessita; recompensa-se a virtude e castiga-se o mal; exalta-se o poder regenerador dos maus, etc.
São experiências humanas que o imaginário do leitor vivencia de maneira inconsciente, e, com elas, seu mundo interior vai-se enriquecendo. Nas "transformações" que são comuns nos contos de fadas (a do Patinho Feio em Cisne; do Sapo ou da Fera em Príncipe, etc.) estão patentes as transformações pelas quais todo ser humano precisa passar (da infância à maturidade) para se realizar em plenitude quando persegue um ideal de vida.
Aliás, há um perfeito paralelismo entre os contos de fadas e a vida humana, quando a entendemos como um percurso, uma caminhada, uma viagem em busca da auto-realização. Nesse "percurso" surgem obstáculos (inimigos, maldades, bruxas, madrastas...), mas também auxílios (amigos, fadas, anões...), e o final é sempre feliz: a realização do ideal.
Como se vê, em sua essência, a estrutura dos contos de fadas corresponde às coordenadas da vida humana. Todos nós, para nos realizar, precisamos ter um projeto de vida (ou vários projetos sucessivos); entregamo-nos à "caminhada" para realizá-lo, encontramos os inevitáveis "obstáculos" que precisam ser superados por nossa paciência, esforço ou obstinação (ou por "auxiliares" das mais diversas naturezas), e. por fim, a realização: o "final feliz". Na verdade, o ser humano veio para "dar certo". Quando não dá é porque algo não vai bem no mundo à sua volta.
Nesta nossa época de contrastes e caos, é fundamental que os adultos que lidam com as crianças (principalmente os professores) se dêem conta do valor ético-existencial dos contos de fadas para o "povoamento" do imaginário infantil. É no "imaginário" que, afinal, nossa vida se resolve (muito embora não nos demos conta disso).
Ao ouvirem (ou lerem) tais contos, as crianças, mesmo sem o saber, estão formando as leituras de mundo que as ajudarão nos caminhos a serem trilhados na vida. Em cada uma dessas histórias maravilhosas, há uma verdade vital. Neste nosso mundo-cão do "vale tudo" e de ausência de parâmetros para o comportamento humano, esses exemplos de vida, em que a virtude é exaltada, o mal é castigado e os altos ideias saem vitoriosos, sem dúvida podem ser ótimos "guias iluminadores" para os pequenos aprendizes de vida e de leitura.
Enfim, o que nos explica o continuado sucesso dos contos de fadas e dos clássicos infantis em geral é o fato de que sua matéria-prima é extraída de verdades humanas e, portanto, não envelhece. Ou, por outra, é fundamentada em necessidades humanas básicas: o fundo impulso de auto-realização do indivíduo; o desejo do eu de ser aceito pelo outro (daí a necessidade visceral de afeto, de amor); a vontade de poder (que leva o forte a explorar o fraco); a luta pela preservação física (contra a fome, o esforço desumano, a ameaça de morte, a defesa contra a violência, etc.). Necessidades que, uma vez frustradas, geram as tragédias (ou comédias, dependendo da ótica pela qual sejam olhadas), os dramas ou peripécias que, transformados em palavras, vêm tecendo a grande literatura (para adultos ou crianças) que, desde os tempos ancestrais, vem seduzindo a humanidade. E para além do prazer e das emoções do leitor, ao participar de tais aventuras, lhe dá grandes lições de sabedoria e de vida. É preciso descobrir que os contos de fadas têm na base a vida real, e que a literatura infantil não é "infantil" ou pueril, como o senso comum (distraído!) a considera. E acima de tudo é um excelente meio de educação a ser explorado.
*FONTE: REVISTA CRIANÇA DO PROFESSOR DE EDUCAÇÃO INFANTIL - MEC

2 comentários:

Fabíola Fachetti disse...

MARAVILHOSO O ARTIGO!!
Oi...
Vim te visitar e dizer que fiz um presente pra você!!!
Passa no meu cantinho pra pegar.
Vou ficar esperando seu recado....bjs e tudo de bom!!!!

EB1| JI Torreira - Fregim disse...

Dscobri hoje este blogue e vou adicioná-lo aos meus favoritos. É um blogue muito interessante. sou professora do 1ºCiclo de Ensino Básico. Trabalho numa escola com 155 meninos em Fregim - Amarante- Portugal. Vou oassar aqui mais vezes.
Flora Queirós