O tempo – todos nós, professores, o sabemos – é um fator de peso na instituição escolar: é sempre escasso em relação à quantidade de conteúdos fixados no programa, nunca é suficiente para comunicar às crianças tudo o que desejaríamos ensinar-lhes em cada ano escolar.
Quando se opta por apresentar os objetos de estudo em toda sua complexidade e por reconhecer que a aprendizagem avança através de sucessivas reorganizações do conhecimento, o problema da distribuição do tempo deixa de ser simplesmente quantitativo: não se trata apenas de aumentar o tempo ou de reduzir os conteúdos: trata-se de produzir uma mudança qualitativa na utilização do tempo didático.
Para concretizar essa mudança, parece necessário – além de ousar romper com a correspondência linear entre parcelas de conhecimento e parcelas de tempo – cumprir pelo menos duas condições: manejar com flexibilidade a duração das situações didáticas e viabilizar o retorno aos mesmos conteúdos em diferentes oportunidades, sob diferentes perspectivas. Criar essas condições exige implementar diferentes modalidades organizativas: projetos, atividades permanentes, seqüências de situações e atividades independentes coexistem e se articulam ao longo do ano escolar.
Projetos
Atividades permanentes
Na 2ª série, por exemplo, uma atividade permanente que se pode realizar é “A hora dos contadores de contos”: as crianças se responsabilizam, em rodízio, por contar ou ler um conto que elas mesmas tenham escolhido (orientadas pela professora) e cuja apresentação tenham preparado previamente, de tal modo que seja clara e compreensível para quem ouve. A criança que assume o papel de “contador de contos” deve levar em consideração certos procedimentos: explicar as razões que a levaram a escolher o conto, conhecer alguns dados sobre a vida e a obra do autor, comentar com seus companheiros os episódios ou personagens que lhe chamaram a atenção (ou não). Terminada a leitura (ou relato), os demais alunos podem intervir fazendo perguntas ou comentários. A discussão se generaliza: analisam-se as ações dos personagens, comparam-se com outros conhecidos, fazem-se apreciações sobre a qualidade do que se acaba de ler… Em outras séries, a atividade permanente não está centrada no conto, e sim em outros tipos de texto: pode ser “A hora das curiosidades científicas”, destinada a dar resposta às indagações das crianças sobre o funcionamento da natureza e a intensificar seu contato com o discurso informativo-científico; ou ainda “A hora das notícias”, atividade destinada a formar leitores críticos dos meios de comunicação.
As atividades permanentes são também adequadas para cumprir outro objetivo didático: o de favorecer a aproximação das crianças com textos que não leriam por si mesmas por causa de sua idade – ler cada semana um capítulo de um conto é uma atividade que pode ser produtiva nesse sentido. A leitura é compartilhada: a professora e os alunos lêem alternadamente em voz alta; escolhe-se uma história de aventuras ou de suspense que possa atrair o interesse das crianças e interrompe-se a leitura em pontos estratégicos, para aguçar a curiosidade. Algumas crianças, nem sempre as mesmas, se interessam tanto que conseguem o livro para continuar lendo em casa e acabam contando a seus companheiros os capítulos lidos, para que a leitura compartilhada possa avançar.
A distribuição do tempo de aula demonstra a importância que se atribui aos diferentes conteúdos. Ao se destinar momentos específicos e preestabelecidos à leitura, comunica-se às crianças que essa é uma atividade muito valorizada. Este é um dos benefícios das atividades permanentes.
Seqüências de atividades – Permitem ler com os alunos diferentes exemplos de um mesmo
Situações independentes – Estas podem se classificar em dois subgrupos:
• Situações ocasionais: em algumas oportunidades, a professora encontra um texto que considera valioso e o compartilha com os alunos, ainda que pertença a um gênero ou trate de um assunto que não se relaciona às atividades que no momento estão sendo realizadas. E, em outras ocasiões, os próprios alunos propõem a leitura de um artigo de jornal, um poema, um conto que os tenha impressionado e cuja leitura a professora também considere interessante. Nesses casos, não teria sentido nem renunciar à leitura dos textos em questão pelo fato de não ter relação com o que se está fazendo, nem inventar uma relação inexistente: se sua leitura permite trabalhar sobre algum conteúdo significativo, a organização em uma situação independente se justifica.
• Situações de sistematização: estas são consideradas “independentes” apenas pelo fato de não ajudarem a alcançar objetivos colocados em relação à ação imediata (para a elaboração de um produto, como nos projetos, ou para o desejo de “saber como continua” uma história de aventuras que provoca curiosidade e emoção, por exemplo).
Embora não estejam relacionadas com propósitos imediatos, as situações de sistematização guardam sempre uma relação direta com os objetivos didáticos e com os conteúdos que estão sendo trabalhados, porque se destinam justamente à sistematização dos conhecimentos lingüísticos construídos através de outras modalidades organizativas. Por exemplo, depois de haver realizado uma seqüência de atividades centrada na leitura de fábulas, cria-se uma situação cujo objetivo é refletir sobre os traços característicos das fábulas e as diferenças em relação aos contos. Do mesmo modo, a partir de um projeto voltado para a produção de um jornal escolar ou uma revista literária, propõem-se situações que permitam definir explicitamente as características do discurso jornalístico e de alguns de seus diferentes subgêneros, elaborar conclusões sobre o uso dos tipos de letras nesses portadores, sistematizar conhecimentos que construíram sobre a pontuação ao enfrentar diferentes problemas de escrita. É dessa forma que a articulação de diferentes modalidades organizativas torna possível
O esforço para ajustar o tempo didático ao objeto de ensino e aprendizagem de um modo que permita superar a fragmentação do conhecimento não se limita ao tratamento da leitura – que tem sido o eixo deste artigo –, mas abrange a totalidade do trabalho didático com a língua escrita.
Em primeiro lugar, leitura e escrita se inter-relacionam permanentemente: ler “para escrever” é imprescindível quando se desenvolvem projetos de produção de textos – já que estes requerem sempre um intenso trabalho de leitura para aprofundar o conhecimento dos conteúdos sobre os quais se está escrevendo e as características do gênero em questão; da mesma forma, no âmbito de muitas das situações didáticas que se colocam, a escrita se constitui em um instrumento que está a serviço da leitura, seja porque é necessário tomar notas para lembrar os aspectos fundamentais do que se está lendo, ou porque a compreensão do texto requer que o leitor faça resumos ou esquemas que o ajudem a reorganizar as informações.
Em segundo lugar, os diferentes tipos de texto – em vez de se distribuírem linearmente, cabendo a cada série determinados escritos sociais – aparecem e reaparecem em diferentes momentos da escolaridade e em diferentes situações, de tal modo que os alunos possam fazer uso deles e reanalisá-los em novas perspectivas.
Em terceiro lugar, as modalidades de trabalho adotadas durante a alfabetização inicial são basicamente as mesmas utilizadas depois que os alunos se apropriam do sistema alfabético de escrita. Como as situações didáticas que se colocam antes e depois de os alunos se alfabetizarem estão orientadas por um mesmo propósito fundamental – criar condições que favoreçam a formação de leitores autônomos e críticos e de produtores de textos adequados à situação comunicativa – o esforço para reproduzir na escola as condições sociais da leitura e da escrita está sempre presente. Desde o início da escolaridade, a leitura e a escrita respondem a propósitos definidos; o trabalho está focado prioritariamente nos textos, propõe-se a análise crítica do que é lido, discutem-se diferentes interpretações buscando acordos, considera-se o ponto de vista do destinatário ao escrever, revisam-se cuidadosamente os escritos produzidos. As atividades devem permitir articular dois objetivos: fazer com que os alunos se apropriem
progressivamente da “linguagem que se escreve” – do que esta tem de específico e diferente do oral-conversacional, dos diferentes gêneros da escrita, da estrutura e do vocabulário próprios a cada um deles – e com que aprendam a ler e escrever autonomamente. Em alguns casos, o professor atua como mediador, lendo diferentes textos para os alunos, ou escrevendo o que produzem e ditam. Em outros casos, as situações de leitura tendem a colocar os alunos diretamente em contato com os textos para buscar informações, para localizar um determinado dado, para buscar indícios que permitam verificar ou modificar suas antecipações sobre o que está escrito. Do mesmo modo, as situações de escrita colocam às crianças o desafio de produzir textos por si mesmos, o que as obriga a se preocupar não só com a “linguagem que se escreve”, mas também com como fazer para escrever. Quando a situação exige dos alunos que leiam ou escrevam diretamente, a atividade pode acontecer a partir de textos completos ou de algum fragmento de um texto que tenha sido lido, escrito ou ditado pelo professor; pode ser individual ou grupal; pode responder a um propósito imediato dos alunos – por exemplo, fazer cartazes e convites para divulgar uma peça teatral que se está preparando – ou responder somente a um objetivo cujo alcance não é imediato, mas muito significativo para os alunos nessa fase: aprender a ler e a escrever.
Delineamos uma modalidade alternativa de distribuição do tempo didático, uma modalidade que responde à necessidade de produzir uma mudança qualitativa na apresentação escolar da leitura. Não podemos concluir este ponto sem reconhecer que o tempo escolar se mostra insuficiente também nessa perspectiva apresentada, que sempre é necessário fazer uma seleção deixando de lado aspectos que gostaríamos de incluir, que a escolha é sempre difícil e que o único guia que até agora temos encontrado para decidir é este: administrar o tempo de tal modo que o importante ocupe sempre o primeiro lugar.
*FONTE: COLETÂNEA DE TEXTOS - PROGRAMA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES ALFABETIZADORES - M2UET3
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