terça-feira, 31 de março de 2009

QUANDO CORRIGIR, QUANDO NÃO CORRIGIR



O professor desenvolve dois tipos de ação pedagógica. Uma é o planejamento da situação de aprendizagem, para a qual tenta criar as condições idéias: oferecer as informações, montar propostas de trabalho de tal forma que o aluno possa pôr em jogo o que sabe, arriscar-se, avançar e compreender mais à frente do que sabia. O outro eixo do seu trabalho é a intervenção propriamente dita no processo que está acontecendo, no qual o aluno, os grupos ou a classe, diante de uma situação proposta, realizam coisas, e o professor participa, desenvolvendo vários papéis.
O professor mantém em suas mãos o pulso da atividade e o olhar atento, para fazer o tempo todo as correções de rota necessárias. Se perceber que algumas crianças tomam um caminho que não é o ideal para a situação de aprendizagem, tem de responder imediatamente. É o que chamamos do "jogo de cintura" do professor. Muitas vezes é preciso mudar o rumo das coisas para dar conta do processo real que se apresenta, de situações ou contextos não previstos quando a atividade foi planejada – já que os alunos quando têm como proposta realizar uma determinada tarefa, põem-se a fazê-lo conforme lhes é possível em cada momento.
Uma intervenção clássica é a correção. Não é a única intervenção possível, nem a mais importante, mas é a que mais tem preocupado os professores.
Quando a prática do professor está carregada da convicção de que seu papel é, fundamentalmente, o de corrigir o aluno, fica evidente que, para ele, aprender é substituir respostas erradas por certas. Numa concepção construtivista de aprendizagem, a função da intervenção do professor não é essa, mas a de atuar para que os alunos transformem seus esquemas interpretativos em outros que dêem conta de questões mais complexas que as anteriores. Isso não significa que a correção perde função. Na verdade, podemos dizer que a correção é algo relacionado a qualquer situação de aprendizagem, o que varia é como ela é compreendida pelo professor.
Pode-se pensar a correção de várias formas. A tradição escolar normalmente vê a correção que o professor realiza fora da sala de aula, longe dos olhos dos alunos, como a principal. Compete-lhe marcar no trabalho realizado aquilo que o aluno errou, para que o erro seja corrigido e não fique presente no produto do trabalho do aluno. Como diz o professor Lino de Macedo2, essa é a perspectiva do empirismo, muito exigente com a transmissão. Não se pode "facilitar" com a transmissão, devemos fazê-la o melhor possível, sem o risco de perpetuar o erro.
Se o que o professor estiver corrigindo for uma redação, por exemplo, e ele levar até o fim a situação de correção provavelmente proporá que o aluno passe o trabalho a limpo, corrigindo. Atrás dessa proposta existe a convicção de que se o erro tiver permanência – e a palavra escrita é certamente permanente -, ele poderá fixar-se na memória dos alunos. Essa forma de lidar com o erro responde a uma concepção que supõe a percepção e a memória como núcleos na aprendizagem.
Outra visão de correção é a que gosto de chamar de informativa. Ela carrega a idéia de que a correção deve informar o aluno e ser feita dentro da situação de aprendizagem. O professor a realiza durante a própria situação de produção, levantando questões que ajudem o aluno a perceber certas incorreções ou simplesmente apontando diretamente uma incorreção que, segundo sua avaliação, o aluno possa reconhecer, aproveitando a informação que lhe está sendo oferecida. Por exemplo: numa classe onde os meninos já escrevem alfabeticamente, o professor passa e vê uma criança que escreveu CUANDO (quando). Ele pode simplesmente dizer: "Leia para mim o que está escrito aqui". ou "Preste atenção em como você escreveu esta palavra. Pense e me diga se é assim mesmo que se escreve", ou: "Procure essa palavra no dicionário", ou ainda: "De que outras formas você poderia escrever isso?" Se esta questão não for exclusividade de um determinado aluno, o professor pode – se não for atrapalhar o desenvolvimento da atividade que está sendo realizada – simplesmente abrir a questão para a classe e dizer: "Alguém quer, por favor, escrever a palavra ‘quando’ na lousa", e levantar assim uma discussão.
Os erros devem ser corrigidos no momento certo. Que nem sempre é o momento em que foram cometidos.
A discussão do erro assumiu um papel importante nos últimos tempos por motivos diferentes e até opostos. Primeiro, foi importante perceber o mal que fazíamos aos nossos alunos quando desconsiderávamos seus conhecimentos com o famoso "ta errado" da caneta vermelha. A idéia de erro construtivo abriu um mundo desconhecido que fascinou a muitos de nós, educadores. Passamos a viver um certo encantamento com os erros: é de fato maravilhoso ver uma criança pequena escrevendo, dentro de um sistema silábico, poesias, parlendas ou histórias. Então nos tornamos leitoras entusiastas de textos silábicos. Quando as crianças passavam a escrever alfabeticamente era mais lindo ainda. Até aí tudo bem, mas as crianças mais velhas e alfabetizadas escreverem errado nunca alegrou ninguém.
No caso da ortografia, que mobiliza tanto os professores3, fica claro que a correção se define pelo momento de aprendizagem em que os alunos estão. Se a criança ainda nem escreve alfabeticamente, e para escrever cachorro usa menos letras do que precisa – por exemplo, KXO -, deve o professor insistir com ela que não é com X que se escreve, mas com CH, ou que o K nem existe no nosso alfabeto e ele deveria escrever com CA? Certamente que não, pois isso não faz sentido ainda para ela. Além de inútil, poderá deixá-la atônita, porque ela não sabe sequer do que o professor está falando. Para essa criança, a intervenção adequada é aquela que a ajuda a transformar suas idéias sobre a escrita, isto é, aquela em que o professor cria situações nas quais ela possa pôr em jogo sua hipótese sobre a escrita, que nesse momento é silábica.
Quando, num outro momento, um aluno escreve CAXORO, o professor precisa intervir na questão ortográfica e considerar cuidadosamente a melhor forma de fazer isso. Se naquele momento o menino está escrevendo uma história, e articulando o fluxo das idéias, interrompê-lo para corrigir a ortografia não faz sentindo, a não ser que ele mesmo pergunte: "Cachorro é com X ou com CH?", e ai, é claro, o professor deve responder. Isso não significa que ele não vá trabalhar com situações de reflexão sobre a ortografia, mas que vai priorizar, naquele momento, o desenvolvimento da escrita do texto, criando uma nova oportunidade, em um outro momento, para intervir especificamente na aprendizagem de ortografia. Esse novo momento poderá ser apoiado naquele texto em particular para aquela criança ou pode ser um trabalho coletivo, no qual o professor tratará questões ortográficas comuns a várias crianças da classe.
O que deve ser repensado é a concepção mais tradicional de correção, apoiada na idéia de que ela tem um caráter cirúrgico, precisa ser feita no ato, em cima do erro. Muitos professores e mesmo os pais consideram que o erro não corrigido ficará para sempre na memória do aprendiz. Isso não é verdade. Se o menino escrever CACHORO uma vez, não significa que ele nunca vá aprender que "cachorro" é escrito com dois erres e não com um só, já que essa é uma ocorrência regular na língua. Além do mais, se simplesmente ver levasse as crianças a aprenderem a escrever, aos oito anos ninguém mais cometeria erros ortográficos, porque o que mais vêem é a escrita correta. Por que haveríamos de crer que a criança vê repetidas vezes a forma certa e não a fixa e, num rápido e eventual contato com o errado, fixa o erro?
Assim, entre o "tudo pode" e o "nada pode", entre o "não deve deixar nem a sombra do erro" e o "agora não é mais para corrigir" existe um enorme espaço para atuação inteligente do professor – como pode ser observado no depoimento seguinte.




Quando eu era professora de uma classe de pré, vivia fascinada por ser testemunha e parceira do processo de alfabetização das crianças.
Uma das características mais marcantes desse momento é a consciência e, por conseguinte, a preocupação que os alunos começam a ter em escrever convencionalmente ou, nas palavras das próprias crianças, escrever certo. Na educação infantil, se você pedir ‘as crianças que escrevam alguma coisa, na grande maioria das vezes elas não têm o menor pudor;: pegam o papel, o lápis ou caneta e se põem a escrever. Mas no pré, como alguns já começam a escrever convencionalmente, outros ficam meio intimidados e não querem se expor.
Este é um dos maiores desafios do professor. Nossa expectativa é que eles escrevam e, a partir dessa produção, possamos colocar questões e problematizar para que avancem nas suas idéias sobre a língua escrita. Mas e quando pedimos que escrevam e eles dizem que não sabem escrever? Aí é uma encrenca. Eu vivi essa situação. Quando os alunos começavam a mostrar resistência para escrever, eu ficava perturbada. Afinal, era verdade que eles não sabiam. A única coisa que sobrava, e que eu achava correto, era dizer: "Escreva do seu jeito".
No primeiro momento isso até funcionou. Eles se despreocupavam, relaxavam e acabavam escrevendo. O problema é que algumas crianças começaram a achar que escrever do jeito delas era sinônimo de escrever de qualquer jeito. Resultado: eu tinha que engolir qualquer coisa porque, afinal, era do jeito delas. Ficou claro também que estavam realizando produções inferiores ao que seriam capazes de fazer.
Percebendo isso e discutindo com outros professores que também estavam sentindo esse problema, acabamos encontrando uma solução. Passamos então a pedir que as crianças escrevessem "da melhor maneira possível" ou "do melhor jeito que conseguissem". Passamos também a chamar a atenção das crianças para que utilizassem conhecimentos sobre os nomes deles e dos colegas, que olhassem as listas (de histórias conhecidas, de materiais, etc.) que havia na classe, que procurassem no alfabeto letras que pudessem servir, etc.
Creio que foi um salto de qualidade para a nossa atuação como professores. Desse modo, as crianças não se sentiam obrigadas a escrever convencionalmente, com medo de estar fazendo errado e, ao mesmo tempo, não se contentavam com pouco.

(Cláudia Arantangy, classe de pré, escola particular)




Os alunos sabem o que achamos importante que eles aprendam, mesmo que não falemos nada.
No extremo oposto ao do professor que não permite a sombra de um erro está o professor que – contínuo com os exemplos de língua portuguesa e ortografia – permite todos. Por não querer bloquear a criatividade do aluno, acaba deixando que ele escreva de qualquer jeito. Essa postura educacional acaba consolidando um contrato didático implícito, pois de alguma forma o aluno percebe que o professor não valoriza esse tipo de conhecimento e acaba por desvaloriza-lo também, não investindo nessas aprendizagens. Os alunos sabem o que achamos importante que eles aprendam, mesmo que não digamos nada. Se um professor enfatiza que escrever corretamente é importante, mas não dedica muito tempo escolar às atividades de reflexão sobre a ortografia, estará mostrando – na pratica e com muito mais força – que não é tão importante assim o que havia recomendado. Da mesma forma, quando aceita que o aluno escreva errado palavras já bem conhecidas, também estará concordando com essa maneira de escrever.
É importante que o professor tenha claro que certos erros, depois de um tempo de escolaridade, são inaceitáveis. Uma criança alfabetizada que copia as lições no caderno não pode escrever "lissao de caza" ou "resouva os problemas". Para situações como essa ele pode fazer um trato com todos os aluno: "Essas palavras não podem mais ser escritas errado". A lista dessas palavras é um instrumento eficiente não para que o aluno escreva certo, mas também para que tenha certeza de que escrever certo é importante e necessário.
As correções feitas pelo professor não podem ser todas da mesma natureza, porque os conteúdos não o são. Não é da mesma natureza trabalhar com cálculo mental e com os diferentes gêneros literários. Em cada situação há várias formas de fazer o aluno saber o que errou, onde errou, por que errou, de maneira a ajudá-lo a avançar. Há ocasiões, também, em que apontar o erro é inútil – como vimos no caso da escrita silábica. -, porque o aprendiz não tem ainda como modificar o que está produzindo na direção pretendida pelo professor naquele momento. No geral pode-se, sim, apontar o erro. Resta saber se o professor está corrigindo porque "professor tem de corrigir", ou se, corrigindo, ele está ensinando.
É evidente que, para perceber em que momento o seu aluno está e a partir daí intervir corretamente, o professor precisa estar instrumentalizado. Numa época em que sabíamos muito pouco sobre as questões da textualidade, sobre os recursos coesivos, uma professora de 3a. série com quem eu trabalhava vivia angustiada. Ela sempre propunha atividades de escrita bem preparadas, com leituras prévias de bons textos para inspirar a escrita de seus alunos, mas não sabia como intervir para que avançassem na organização textual. Muitos escreviam bem, outros tinham um texto que não fluía. Para intervir na coerência e coesão dos testos destes últimos, a única coisa que conseguia fazer era apontar onde não estava bom para que eles refizessem. A seguir reproduzo um trecho de seu diário.





Estou perdida, definitivamente não sei como intervir nos textos de meus alunos para que avancem. Tenho sentimentos ambíguos. Proponho atividades de escrita de contos bem preparados, leio muito para eles para que se inspirem, analiso como os bons autores escrevem.Todos adoram nossas leituras e discussões. Hoje começaram a escrever um conto de terror. Cheguei em casa e comecei a ler. Algumas das produções me deixaram animadíssima, estavam bem-feitas, com o uso de diversos recursos para criar um clima de pavor. Outras eram fracas, sem graça, não incorporavam à produção nada das contribuições que eu havia preparado anteriormente. Um exemplo é a história do Rafael, meia página, cheia de erros ortográficos e ainda sem sentido. O que fazer com ele? Corrigir os erros? Dizer que precisa desenvolver o texto? Acho que vou sentar com ele e pedir que diga tudo o que pensou em escrever, pois ele participou muito das discussões que fizemos sobre os textos de terror, e parecia cheio de idéias. Quem sabe posso recuperá-las com ele e traçar um roteiro para que escreva novamente. Em compensação o do Maurício estava demais, li para todos em casa e fez o maior sucesso. Apenas algumas questões... Este conto mostrou como ele melhorou em relação aos contos anteriores.
Mas o que me perturbou mais, por incrível que pareça, foi o conto do Guilherme. Muito bom, como de costume, ele está virando um excelente escritor, mesmo, mas algumas partes são incompreensíveis. A trama é interessante e cheia de idéias, mas alguns parágrafos são extremamente confusos, com uma escrita enrolada. Parece que sai de um lugar e não chega a nenhum outro. Como sempre, marquei com um traço na margem da folha os parágrafos que precisavam arrumar. O que acontece é que cada vez que eu faço isso ele se desanima e simplesmente corta o parágrafo, dando um jeito de a história não precisar dele. Eu sinto que com isso não estou ajudando em nada. Acabo deixando a história dele menos interessante do que poderia ficar. E o pior, ele, que escreve muito bem e bastante, acaba por ter mais coisas para revisar do que a Mariana, que escreve umas histórias pequenas e mais simples.
(trecho de diário de Ana Rosa Abreu, escola particular, 3a. série, 1987)






Essa professora costumava anotar ao lado do parágrafo que ela achasse mal escrito a palavra "confuso" e devolver ao aluno para que ele arrumasse. Como tudo o que ela oferecia ao aluno era o seu julgamento, as crianças ficavam aflitas e começavam a simplificar o texto, escrevendo o mínimo possível para tentar garantir o acerto. Isso é muito comum: os alunos escrevem pouco para errar pouco. O Guilherme, que escrevia muito bem, também reconhecia que partes dos seus textos não estavam claras, mas não tinha recursos para escrever orações subordinadas como queria. Tentando ousar e escrever mais "bonito" , como os autores que lia, usava conectivos inadequadamente. Com esse tipo de intervenção da professora, em vez de melhorar, acabava empobrecendo a própria produção. Para ajudá-lo era necessário a professora procurar compreender as suas reais dificuldades e encontrar formas de intervir que lhe informassem não apenas que aqueles trechos estavam confusos mas como melhora-los. É preciso que a correção seja informativa para o aluno e o instrumentalize para superar as dificuldades.
Se a correção incide apenas sobre o produto final, o professor poderá ter uma lição sem erros, o que não significa que o aluno tenha aprendido. Mas, quando é sobre o processo de aprendizagem, ela é fundamental, porque corresponde exatamente à intervenção que se espera do professor – alertar o aluno para alguma inadequação da atividade que está sendo realizada, reorientar a ação do aprendiz, alertá-lo para algo que ele não considerou ou percebeu, levantar questões que o ajudem a pensar sobre aspectos de que ele não tinha dado conta. Porque o objetivo do ensino é que o aluno aprenda e produza cada vez mais e melhor, não que faça lições sem erros ou que tenha um caderno "perfeito".



TELMA WEISZ




*FONTE: GUIA DE ESTUDO PARA O HORÁRIO COLETIVO DE TRABALHO - SMESP

2 comentários:

Rita de Cassia Ochelak disse...

Preciso de socorro!!! Duas crianças, cursando o 6o. e 7o. ano em especial a do 7o. ano apresenta muitos erros de escrita, por exemplo sílabas com o R no final ela inseri no meio e a do meio no final, no caso de m ou n ela simplesmente supri. Dos trabalhos realizados anteriormente por outros docentes sobrou a antipatia pela lingua materna. Que sugestões de trabalho vocês podem me indicar??

Priscila disse...

Moro em Garibaldi no RS, sou professora de Português na parte da manhã e tenho muitos alunos com dificuldades, mas este ano fui convidada a dar aula para uma turma de alfabetização no 2.º ano de uma escola estadual à tarde. No começo me apavorei porque era algo totalmente novo pra mim, ma gostei bastante dos textos, depoimentos e sugestões deste blog! Parabéns por ajudar a quem precisa! Espero poder colaborar sempre que preciso.