sábado, 21 de fevereiro de 2009

PARA REFLETIR...

TUDO POR CAUSA DO OLHAR
Rubem Alves



Os textos sagrados dizem que no princípio era o Paraíso. Homem e mulher, seus corpos tranqüilamente nus, gozavam da felicidade do olhar do outro. Os olhos do outro eram uma carícia. O Paraíso começa no olhar. Aí houve uma perturbação: um fruto delicioso provocou uma metamorfose malvada - os olhos se transformaram. Homem e mulher começaram a ter medo do olhar do outro. Tiverem vergonha dos seus próprios corpos. Fizeram precárias tangas de folhas de figueira. Deus teve pena deles. Compreendeu que o Paraíso, pelo poder do mau-olhado, estava definitivamente perdido. O Criador lhes deu então, como presente de misericórdia, a permissão para viverem pelo resto dos seus dias se escondendo um do outro. E até lhes fez túnicas com que cobrissem seus corpos. O Paraíso foi perdido e os portões se fecharam. Tudo por causa do olhar.
Fechados os portões do Paraíso. Fechada a porta da cozinha. As ordens eram para que a menina não entrasse nos salões da casa, preparados para o baile. Naquela noite tudo deveria ser lindo e perfeito. Não seria uma menina feia e desajeitada que iria perturbar aquele momento de glória para a mãe e as irmãs, todas lindas. A presença da menina nos salões de festa iria criar espanto nos olhares, provocaria desconforto e vergonha e, com isso, a necessidade de explicações. Mãe e filhas tudo fizeram para que os seus olhos e os olhos dos convidados fossem poupados. Por isso a menina deveria ficar na cozinha.
Não era a primeira vez. Ela sempre fora diferente. Na estória do Disney ela era órfã linda e tinha uma fada madrinha protetora, que se encarregou de fazer com que sua beleza resplandecesse. Na estória original não foi assim.
Uma vez o pai... O que me intriga nessas estórias é o papel dos pais: homens bons, cheios de amor, mas sempre distantes, sem perceber o sofrimento da filha e a maldade da mulher. Onde está o pai da Branca de Neve? Acho que ele morava dentro do espelho; ele era o espelho. Seus olhos estavam enfeitiçados pela mulher vaidosa, que só pensava em si. Mas, de repente, seus olhos se abrem: ele vê a filha. É aí que a mãe-madrasta se transforma em bruxa: ela não podia suportar que o marido tivesse, para a filha, o olhar que não tinha para ela. A inveja sempre transforma as pessoas em bruxas. E o pai? Não mais se ouve falar dele. Sumiu nos cacos do espelho. Numa outra estória a madrasta enterra a enteada. O pai, ingênuo, bobão, não percebe nada. Quem se dá conta do ocorrido é o jardineiro. Os pais: serão eles uns bobos? Como explicar isso, que os pais, tendo olhos nada vissem? Sei não. Não entendo.
Pois o pai da Cinderela, indo fazer uma viagem por terras distantes, chamou as filhas e disse-lhes que lhe contassem dos presentes que desejavam receber. A primeira pediu vestidos de grifes famosas. A segunda pediu perfumes franceses. Cinderela, bobinha, coitadinha, sem nada entender do jogo das vaidades urbanas e movida por sentimentos rurais, fez um pedido estranho: que ele, o pai, lhe trouxesse o primeiro galho de árvore em que sua cabeça esbarrasse. E assim aconteceu: cada uma recebeu os presentes pedidos. A menina, com o galho quebrado em sua mão, enterrou-o no campo, regou-o, cuidou dele. O galho pegou, cobriu-se de folhas, transformou-se em árvore frondosa, onde os pássaros faziam seus ninhos. Quando a menina ficava triste, ela vinha contar suas dores à árvore. A árvore era sua mãe. Pois mãe é isso: o lugar onde se pode chorar sempre sem ter vergonha.
Lugares onde se pode rir são muitos: as festas, os bares, os jantares, a Disneyworld, com amigos e desconhecidos. Os risos não necessitam justificativas. Mas são poucos os lugares onde se pode chorar, sem sentir vergonha, e sem ter de suportar a tolice dos insensíveis que desejam transformar o choro em riso: eles não entendem. “Mãe é o lugar onde se pode chorar sem sentir vergonha”.
Que linda metáfora essa, para uma mãe: árvore. As árvores estão sempre à espera. Acolhem aqueles que as buscam na sua sombra. São silenciosas. Sabem ouvir. Não têm pressa. Sob as árvores os pensamentos se aquietam. Elas nos falam da estupidez dos homens e mulheres na sua correria, sempre em busca dos olhares dos outros. Coitados dos adultos: sempre prisioneiros dos olhos dos outros e dos pensamentos que imaginam morar neles. Árvores não têm olhos. Por isso elas não fazem comparações. Não dizem que esse é mais bonito que aquele. (Malditos sejam os boletins escolares! Espelhos onde as madrastas procuram o rosto dos seus filhos! Servem para fazer comparações. Boletins separam as crianças que vão para o baile das crianças que vão para o borralho. São os boletins que situam as crianças no jogo das comparações e de invejas que os pais jogam com seus filhos.)
Naquela árvore moravam os pássaros, amigos da menina. Avezinhas, símbolos de fragilidade e inocência.
Na estória do Disney tudo termina bem, e a madrasta malvada e suas filhas horrorosas sofrem o castigo de ter de contemplar o triunfo da Cinderela. Na estória original é diferente. Os pássaros, emissários da árvore-mãe, acompanham a procissão que seguia o casamento da Gata Borralheira com o Príncipe. Na subida da escadaria da igreja, vêm eles, velozes, e com seus bicos afiados furam um olho da madrasta e das duas irmãs. Na saída do casamento, na descida da escadaria, vêm eles novamente e furam o outro olho das três. Doce é a vingança. Foram castradas do seu órgão mais terrível.
Diz o Pequeno Príncipe que “o essencial é invisível aos olhos”. Tirésias, o vidente cego do mito de Édipo, segundo o próprio Édipo, era aquele que, sendo cego, via as coisas que os que viam não viam. Será que a madrasta e suas filhas, ao ficarem cegas, se transformaram em videntes e passaram a ver o essencial? Não posso responder. A estória não revela se madrasta e filhas passaram a ver o que não viam. O que eu sei é que é surpreendente a cegueira daqueles que têm olhos perfeitos. Os pais, em todas essas estórias, tinham olhos perfeitos e nada viam. E são muitas as mães de barriga que jamais vêem seus filhos. O que vêem é, de um lado, aquilo que desejam que os filhos sejam: bonitos, inteligentes, encantadores, heróicos, geniais, bem-sucedidos, seres de palco, recebendo os aplausos – e, ao seu lado, eles mesmos dizendo: “Fui eu que fiz” Fui eu que fiz!”E, do outro, seus filhos, crianças comuns, limitadas, não muito bonitas, não muito inteligentes, sem encantos especiais nem virtudes de palco – crianças simplesmente, que poderiam ser felizes se os olhos dos seus pais não as transformassem em Gata Borralheira. Quando isso acontece só resta aos pais rezar para que os pássaros não venham para realizar a vingança.

Um comentário:

Simone Damini disse...

Estou encantada com tua cultura. Parabéns. teu blog me faz refletir como professora, pessoa e principalmente Mãe!!!! Um abraço. Vou copiar tá!!!! mas referencio sempre o teu blog. Podes olhar se quiseres. Felicidade e bom carnaval.